31 de dez. de 2023

01/01/2024




Escreve -se, talvez, para represar uma magia que insiste em escapar por entre os dedos, por entre o ordinário da vida;

Sem se dar conta muitas vezes que é esse fluir, é esse viver comum que gera todo o encanto. 

Escrevendo se desafia o tempo: agora mesmo, há dez anos, estamos eu e meu pai ali fora, recém chegados a esse lar, esperando pelos clarões no céu, ouvindo uma canção sobre o futuro levar o passado embora...

Só que o futuro nada leva.

E repito de novo e outra vez, como disse o poeta, que em mim nada é extinto ou esquecido. 

Tudo permanece aqui, vivo, quente, pulsando. 

Mas não permanece o mesmo, e eu gostaria às vezes de ir para longe e observar o tanto que a alma cresceu. 

Em meio às turbulências tantas, as flores plantadas, os amores perdidos, os abraços dados, os sorrisos recebidos, chegamos a uma lágrima humilde, de uma gratidão tão, tão pura, escorrendo morna e lenta...

Do pouco que sei, de algo estou certo, o sinônimo de vida é recomeço.

27 de dez. de 2023

26/12/23




 Não se abrirão ainda portas aos silêncios

Talvez minhas palavras e suas tentativas 

Maculem a sagrada e bela poesia dos grandes arautos 

Talvez meus sentimentos não sejam os mais puros e leves 

E assim materializados em linhas 

Nenhuma claridade acrescentem às noites escuras de tantos 

Mas há no espírito suave melodia que não se cala 

Uma fé menina que se não cresce, ao menos nunca perde a formosura 

Há memórias tão vivas

Chegadas, despedidas 

Primeiros abraços

Últimos adeuses 

Tudo compondo de notas delicadas essa canção sem fim

Foram sim, tantas, as flores perdidas pelos caminhos 

Os passos em desequilíbrio beirando a pecados

E o medo nunca deixou de ser incômoda companhia 

Mas o olhar fita firme o horizonte com sua inexplicável claridade

Pelos redemoinhos eu vejo esperanças rodopiarem 

E por vezes eu sei que minhas preces alcançam esferas celestes 

Ainda piscam as luzinhas de natal 

Ainda escorrem córregos mornos dos olhos 

Ainda estou aqui.

25/12/23



 Há dois milênios, o santíssimo Sim.

Então das maiores e mais puras esferas

O detentor da Verdade olhou com profunda misericórdia esses minúsculos irmãos 

E até eles veio

E caminhou por caminhos e corações áridos 

Semeando, semeando 

Limpando, curando

E amou de tal forma 

Que sua voz ainda ecoa 

E para sempre irá ecoar

Pelas ruas agora, claridade tantas 

Canções por seu doce nome 

O abraço de irmãos 

A mesa posta 

Uma profunda oração

Amigo, mestre, irmão

Que vejas aqui neste peito 

Aquela humilde manjedoura que O acolheu

E que aqui também em mim

A Tua Luz nasça.

11/12/23



 Havia um fragmento do infinito naquela avenida 

Porque no deleite de um instante sem fim

Nada faltava

Tudo bastava

Pois que havia o vento 

A claridade

As árvores dançando impossivelmente

E no imenso céu acima 

Nuvens enfileiradas

Como que pintadas por mãos generosas 

Em largas pinceladas 

Agora tudo isso adormece a um passo do esquecimento 

Mas pela janela sopra uma brisa doce 

Luzes piscam calmamente 

E eu sinto que algo do Sagrado está aqui agora

A me envolver como em um abraço amigo

Delicado

Ansiado

E mais um corte se fecha 

E mais uma cura floresce 

A vida entoa suave melodia

A noite extrai suspiros esperançosos 

Cessam os estrondos 

Repousemos agora

Não há nada a temer.

09/12/23

 


Ao abrir a porta

Um aroma com qualquer coisa de saudade 

De passado 

Do que se perdeu 

Ao abrir o peito 

Uma claridade macia 

Pequenas esperanças em cintilância

E o espírito

Com as mãos sempre sujas 

Não só de pecados 

Mas de enterrar sementes nos lamaçais 

Esperando pelos lírios

Pela floração

Pela absolvição 

Enfim

Os espelhos refletem pouco 

Menos do que nada 

Daquilo que foi tanto

Que foi mais que tudo

E que passou 

Agora as janelas estão abertas 

A brisa da noite adentra suave 

E move as páginas sagradas sobre a mesa 

Acaricia meus apelos 

E pelos tantos passos em falso

Eu mais uma vez me concedo perdão.

07/12/23



 Há pela atmosfera uma claridade perfumada.

Dias dóceis, talvez.

Uma prece, uma canção, uma súplica.

O gentil silêncio.

As pracinhas repletas das luzes de natal; 

O coração cansado da espera, mas batendo tão bonito.

E a esperança de que talvez minha voz possa ainda transpassar os telhados, as copas das árvores, fios e edifícios, 

E alcançar o céu...

Este céu de nuvens como as da infância,  

Jorrando uma luz magnânima,

E deixando tudo abaixo tão magnífico.

Fere, sim, esse não bastar, 

Essa linha de chegada que nunca chega, 

Esse cume jamais alcançado,

Mas é dezembro e a vida prepara seu simbólico reinício.

O espírito ainda se renova aos sopros suaves da brisa,

O espírito ainda reflete o que vislumbra de sagrado, 

Como se não fosse tarde demais.

01/12/23



 Uma pequena ode ao sono profundo das palavras,

Às, novamente, últimas sementes lançadas ao solo árido,

Ao preço insano pago pelos sonhos,

Aos últimos sentimentos.

Na alma, sei, há vastidão inclemente,

Mas faz-se luz, muita luz, tanto que pouco se vê.

O que ainda há para ser dito, rogado?

Uma prece profunda, uma viagem demorada rumo a um longo adeus.

E essas palavras, sempre elas, a trazer e a levar,

A trazer e a levar...

Como ondas calmas e fortes.

E eu temo em silêncio.

Temo que sem palavras e sem sentimentos 

Acabem-se os poemas de amor,

E ninguém sinta falta.

Pois que coisas maiores se perderam pelas dobras do tempo,

E os poemas todos, de amor ou não, 

Adormecem esquecidos, adornando velhas estantes,

Restando apenas um despretensioso devaneio por uma tarde muito ensolarada,

Restando apenas versos de um velho poeta que eterniza memórias ainda mais velhas,

que assim como essas,

A ninguém interessam mais.

06/11/23



 São apenas outra vez murmúrios sem propósito e sem destino pela tarde de farta luz. 

Pois que em alguns fragmentos de tempo há beleza e a alma exclama:

'Por este instante, sou completamente feliz!'

Sei da proximidade do silêncio, uma calmaria estranha anuncia sua chegada. 

É passado o tempo da floração dos ipês, da saudade, do amor. 

Aquelas memórias imensas, clarões sublimes na noite eterna, jazem agora como fotografias quase sem cor de uma outra vida, de uma outra história, que não a minha. 

Por ora, então, há a tarde,

Há borboletas brancas beijando pequenas flores roxas, 

Há um último botão no jasmineiro,

Há sua falta.

25/10/23




Já não temo a ausência da sagrada voz;

Poucos são seus ecos a adentrar meu peito.

Já não temo a raridade com que sonhos emitem doces cânticos;

Sim,

As guerras não cessam... 

Não por aqui, não por enquanto.

Mas a chuva ainda lava a atmosfera nos finais de outubro 

E nas trincheiras cavadas a sangue e suor na realidade, 

Há repouso.

Eu pendo minha cabeça ao escorrer de poucas lágrimas,

Cheias de sentimentos, carentes de razão,

E vejo agora um limpo firmamento aos poucos brilhar,

Vejo as estrelas emergirem da escuridão, em calmaria e silêncio.

Adormeço... 

No torpor das horas vislumbro imagens utópicas bailando, bailando,

Como se a vida, a carne, o tempo, não doessem.

Então um rosto, um sorriso, um abraço 

Um entrelaçar de dedos...

E já não estou só.

04/10/23

 


Um leve desaguar no dia de Francisco 

O nobre obreiro de Assis

Francisco que também é como foi chamado meu pai 

Resiliente, digno

Francisco, como o Velho Rio que leva vida ao sertão 

E eu aqui, tão pequeno 

Ouço o cântico dessa chuva 

Revolvendo as brasas dessa minha fé ainda tão pequena 

Mas ainda assim, já tão bonita 

Usando pequenas pedras para compor poemas simplórios 

Plantando sementes humildes 

Na esperança da floração 

Na esperança do perfume do jasmineiro

Orando... 

Pai, mesmo quando eu for digno de Lhe ver a face

Mesmo quando nenhuma mácula restar no meu espírito 

Mesmo quando minha alma não for nada além de Luz 

Mesmo quando o tempo, o espaço e a carne não fizerem mais sentido 

Ainda precisarei da Tua Misericórdia da mesma forma como preciso hoje 

Hoje, que pouco sou além de falhas e sombras

Ainda rogarei por Teu Amor

Como hoje,

Que ainda sou a menor das Tuas criaturas.

19/09/23



 Torce-se a alma por alguma emoção 

Para que goteje 

Quem sabe 

Alguma luz 

Algum perfume 

Algum propósito 

Agosto passou 

Mas é sempre agosto 

É sempre uma estiagem brava 

Infindável 

Um vento seco

Forte e poeirento 

Um céu desbotado 

Ainda assim

Como pediu a mestra 

Remove-se pedras 

Planta-se roseiras 

Tenta-se fazer da vida mesquinha 

Um poema.

31/08/23

 


Agosto despede-se com vasto temporal 

Relâmpagos fartos 

Orações interrompidas e retomadas

A água pura lavando as janelas brancas

Surge então 

A já memória 

Do coração acelerado 

Mesmo que já não tão jovem 

E uma súplica humilde 

Silenciosa: 

Quem sabe

Meu Deus 

Minha vontade não seja também 

Tua vontade 

Agosto que já tanto levou

Talvez só parta dessa vez

Depois de algo belo trazer 

É alta madrugada...

Mas aqui ainda protegido da alvorada 

Não há o que impeça o sonhar.

27/08/23


 Até mesmo agosto com toda sua eternidade começava a chegar a um fim

Deixando as avenidas forradas com as flores de ipês brancos e amarelos

De longe, o tempo assusta, imenso e selvagem 

De perto é uma dama requintada, de perfume doce e gestos nobres 

E ainda sento ao seu lado

Peço que me conte algumas histórias sobre o que foi e sobre o que virá

E gosto quando ela fala, quando sorri, quando aponta o caminho 

E temo quando ela silencia e fita o horizonte com um olhar imóvel

Já não cobro tudo o que de mim ela levou 

Mas agradeço por tudo o que me trouxe 

Repito a ela 

Como disse o poeta

Em mim

Nada é extinto ou esquecido 

Não por completo 

E ela suspira com um sorriso complacente

Não sou o pior dos seus filhos, talvez 

Eu penso 

Ainda espero com paciência o florescer anual das orquídeas 

Ainda tiro o pó com delicadeza de todas as lembranças que apenas repousam nas prateleiras da memória

Ainda acordo em algumas noites pedindo perdão pelos meus tantos pecados 

E eu a temo... E como 

Seu passar lento, gotejante

Levou sem esforço impérios, nações, eras 

Que se dirá de mim...

Um cisco ao vento 

Não mais que isso

Mas hoje sento ao seu lado sem dor 

Em uma oração silenciosa 

Ainda é agosto 

Ainda há esperança 

E chove 

O jardim floresce 

Talvez eu também.

12/08/23

 


É a mesma velha ventania pelas ruas vazias de agosto 

As velhas folhas acertando meu rosto e suas primeiras marcas que não irão mais partir 

Em uma fração de segundo 

Um aroma também ancestral 

De eras repletas de uma poesia quase inocente 

Mas eu caminho sobre meu próprio caminho 

Enquanto as luzes da cidade começam a brilhar 

E vou só 

Ainda que não seja tão tarde

Eu vou só 

E leve 

Então asas me brotam dos ombros 

Ao sentir que me torno este agosto

Este agora 

Ao sentir que me torno as luzes da cidade 

Os carros que vem e vão

O perfume das mangueiras e eucaliptos em flor 

O céu escuro abraçado por nuvens pesadas 

E por um instante 

Por uma minúscula trégua do tempo 

Tudo é perfeito 

Pois não há medo.

08/08/23

 


Não há mais o que precise ser dito

Talvez, nunca houve

Mas temo que um dia o cessar das palavras traga um silêncio profundo, permanente

Que a interrupção desses cânticos, quase murmúrios

Quebre um encanto que já quase jaz sem poder 

Então, insisto

Pois que sopram ainda os ventos de agosto

Levando e trazendo memórias desbotadas como esse azul do céu

O velho ipê range enquanto se prepara para mais um epitáfio 

Os campos lentamente adormecem aguardando a primavera

E os tempos de brava estiagem deixaram marcas profundas

E é sim bem pouca a mágica que escorre de tudo

Só que a vida ainda sopra forte lá fora

Levando e trazendo esperanças de cores fortes como o céu noturno 

Por isso, insisto...

20 de jul. de 2023

 



Ainda pode-se ouvir o sino da velha igreja de Nossa Senhora

Ao longe, abafado 

Um som que já é quase mais uma memória que um fato

Minutos antes 

O silêncio cortante 

Com poucas palavras afiadas desfilando diante dos olhos 

E se tudo desabar, meu Deus? 

O coração aflito, apertado

Então o badalar distante...

Como que Deus dizendo 

Estou aqui

Sempre estive aqui 

E aqui continuarei 

Assim, o silêncio torna-se colo

O escuro da noite, um afago

A brisa quase fria, um sopro perfumado de misericórdia.

8 de jul. de 2023

 


Guiava-se às vezes ainda pelo brilho de estrelas mortas 

Visto que quando a noite é repleta de uma escuridão dura

Quase tangível 

Mesmo que falsas

As tais quase únicas claridades 

Eram os únicos sinais a apontar o caminho 

E por tanto olhar o firmamento 

Na busca infinda de alguma luz ilusória

Mal notava o próprio peito um tanto mais quente

Um tanto mais cintilante 

Entoando canções ancestrais 

Imaculadas 

E por tanto olhar o firmamento 

Na busca infinda por anjos imóveis em seus pedestais 

Mal notava o próprio espírito um tanto mais puro

Um tanto mais leve 

Alçando voos modestos

Mas com suas próprias asas.

27 de jun. de 2023



Em certos dias acordava com um medo

De que o frágil sentido das coisas se perdesse 

De que

De repente

Nada mais estivesse lá 

Em seus lugares nas estantes

Nas rodovias 

Nos corpos e corações 

Um medo quase sem razão

Ou não 

Feito quando era menino 

E temia dormir achando que o dia não nasceria 

Que ao despertar ainda seria noite 

Noite

Noite 

Para sempre noite

Como se o dia se esquecesse de voltar

E por algumas vezes aconteceu 

Os objetos sumiram das estantes 

Os carros não encontraram as rodovias 

O coração se partira

Por algumas vezes 

A noite foi longa 

Tão longa que quase não se viu claridade alguma ao amanhecer 

Um dia estranho

Com uma luz suja

Cansada 

Ali só por obrigação

E não houve quem voltasse ou quem chegasse 

Quem dissesse 

Estou aqui 

Não 

Só o silêncio de sempre 

Um sopro afiado e frio de realidade 

Então se escrevia 

Porque ela estava certa 

Escrevia-se sim para desabrochar 

De um modo ou de outro 

Para que não se murche e se caia

Como os botões daquela roseira na janela da juventude 

Escrevia-se para dourar de eternidade o efêmero 

Para acender alguma luz perene 

Para que ainda se sonhe

Que algum dia você estará aqui.

 


Preencher de vida 

De saudade

De memória 

Cada canto

Cada canção 

Cada hora 

Tornar bela a noite preta

Profunda 

Para que a alvorada se achegue 

E se encante 

Com os ressignificados

Com os renascimentos 

Fertilizar de passado as terras estéreis 

Esperar que cresça

Floresça

Frutifique

Cem por um

Cem por um

Até que os céus se abram 

E a força do futuro 

Derrube as barragens

E o peito se lave

E dos olhos 

Jorre enfim

Amor.

25 de jun. de 2023

 


A cada dia 

Um pequeno passo 

Sementes nas rachaduras 

Em breve a florescer 

Mais um cômodo resignificado

O perfume

A poesia

A vida

A ressurgir 

Até que o Belo faça enfim morada 

E abra-se as portas da alma em convite 

Sê bem-vindo à minha alvorada 

Ao meu espírito reconectado 

Desfragmentado 

Sê bem-vindo ao meu Lar 

Ao abrigo humilde de sonhos descomunais

Sê bem-vindo a Mim 

Enfim

Renascido.

8 de jun. de 2023


 O mundo ruíra-se por centenas de milhares de vezes 

E reconstruíra-se quase completamente outro em seguida 

Sob os mesmos alicerces 

Então é estranho que por fora tudo pareça igual 

Enquanto no âmago tudo esteja diferente 

Pela primeira vez o novo adeus não fez mais sentido 

Pela primeira vez o que era próximo parecia extremamente distante 

E as palavras tornaram-se relâmpagos 

Pequenos e rápidos clarões na noite que sempre volta a reinar soberana em algum momento 

E por todos os tempos esperava um sinal que não vinha 

Alguma resposta para as perguntas que já não são mais feitas 

Mas esperava 

Esperava enquanto a luz do dia não chega definitivamente 

Enquanto do peito ouve ecos 

Preces e murmúrios 

Exaustivas ânsias 

Enquanto o espírito conserta rachaduras e trincos que sempre voltam a aparecer

E agora em que finalmente se faz algum silêncio lembro-me da indagação:

Qual a diferença entre a poesia e o poema?

A poesia é o presente 

O poema é o passado 

Sonhando com o futuro.

4 de jun. de 2023

 


Este que observa a alvorada em calmaria

Não chegou aqui facilmente 

Ainda que de forma oculta 

Seus pés sangram

Pois foram raros 

E custaram caro 

Os momentos em que caminhou por flores 

Seus olhos fitam o horizonte com suas cores escarlates

E as luzes da manhã iluminam suas cicatrizes 

Algumas rasas 

Outras 

Abissais 

E o tempo irá passar 

Continuará seu cavalgar voraz 

Saltando anos como pequenos obstáculos

Sem nada levar 

Sem nada extinguir ou apagar 

Para que não se deixe de usar palavras como 

Sonho

Saudade 

E esperança 

O tempo irá passar 

Mas agora 

Por um minúsculo instante 

Absolutamente nada dói

E a vida derrama sua misericórdia 

Nas rachaduras do espírito alquebrado

Ainda não é tão tarde 

Mesmo com as portas fechadas 

Mesmo com o profundo silêncio

Mesmo com todos os adeuses.



Novamente 

O que resta são letras e letras 

Tortas 

Ternas 

Acanhadas 

Mal alinhadas 

Abrindo um caminho estreito 

Por onde sentimentos difusos deslizam exaustos 

Sentimentos cambaleantes em sua busca infinda 

Um eclipse nunca mais visto 

Um perfume nunca mais sentido 

Um sorriso nunca mais aberto 

São novos tempos 

Mas agrupo velhas sílabas para celebrar seu nome 

Para que não parta por completo 

Para que a memória não desista de te guardar 

Para que se espere 

Mesmo sabendo não ser possível 

Um nova chance.

28 de mai. de 2023

 


Em algum lugar 

Alguém ainda espera por sua voz 

Enquanto você repara rachaduras 

E sonha em desenhar balões 

Em um quarto vazio de paredes brancas

E seus olhos brilham

Como uma criança de sete anos 

Repleta de tanto futuro 

E sobre a sua forma de cura 

Não ouvi relatos mais reluzentes

Colando

Adequando 

Plantando

Florescendo

Alvorecendo 

Somos nossas histórias

Não somos?

Disse para a gentil dama 

Somos sim 

E um pouco mais do que há de se viver 

Eu também já fui bem longe 

Acredite 

Procurando um sonho bonito que só 

E voltei pra bem perto 

Muito perto

Dentro de mim

Para poder fazer disso

De mim

Meu próprio lar

Enfim.

26 de mai. de 2023

Último fôlego



De tudo que era tanto 
Restaram apenas palavras 
Restaram apenas canções 
Restou pouco 
Menos que nada
 
Nenhuma prova física da deslumbrante existência 
Apenas um sussurro 
Uma voz 
Uma cor dos olhos 
O paradoxo de um adeus sem fim 

Mas alvorece enfim 
Outros ciclos se conectam 
E se encerram 
Enquanto a duras penas
Eu cresço um milímetro por milênio

Mas alvorece enfim 
Novas histórias serão contadas sob as luzes juvenis
E antes do profundo mergulho 
A esperança de um último fôlego 
Até que finalmente se beije a superfície.

20 de mai. de 2023

 


O já velho garimpeiro 

Outra vez 

Revolvendo o leito do rio cansado 

Em busca de algo que brilhe 

Algo que valha 

Algo que reste

Mas apenas memórias foscas surgem das águas 

Memórias que a correnteza sempre leva

E sempre traz de volta 

Nunca mais 

Nunca mais 

O inestimável diamante azul 

Com seu brilho inigualável 

Majestoso 

Impossível

Nunca mais a pureza extrema 

Perfeita 

Amada

Apenas as águas turvas 

O cascalho afiado cortando os dedos 

O cessar das luzes

A saudade

É então o fim 

É então tarde 

O garimpeiro repousa suas ferramentas

Gastas

Danificadas

E parte do rio 

Para o qual em algum momento há de retornar 

Para revolver de novo e novo

Sem esperança 

O leito silencioso 

Sem saber 

Que ali naquelas águas 

Só o

 que de precioso restara

Era ele. 

 


Houve um pequeno 

Um curto espaço de tempo 

Em que não havia tempo 

E por não se saber da passagem das horas 

Se era infinito

E tudo o que agora é tanto 

Os relógios

Os horários 

As hierarquias

As falsas promessas e falsos sorrisos

Os sonhos monumentais

Era nada 

Apenas um ruído distante

Ecoando no horizonte sem fim

E tudo de tão pouco 

Um aroma

Uma luz do sol

Uma flor 

Um riso de criança 

Um fim de tarde 

Um outono

Era o que era na verdade tudo 

E bastava 

Talvez eu soubesse antes 

Muito mais sobre tudo do que sei agora 

Com a memória ainda pura 

Límpida

Repleta de ecos fluorescentes

Da verdadeira vida 

Agora então 

Quando os anos passam displicentes 

Eu luto para levar o menino para brincar lá fora 

Como antes 

Quando o que doía

Era apenas a noite chegando e pausando a felicidade do dia 

Quando o que doía era só um joelho ralado 

E não um coração que se partia.



 A alma entoa uma canção como uma prece 

Uma melodia harmoniosa 

Uma voz sagrada 

Sem tantas súplicas 

Calma

Sem tantas saudades 

Branda

O que resta ainda a ser dito

Repousa dócil 

Sem pressa

Paciente 

Sem angústia

Esperançoso 

Pois não restam inimigos à porta 

Não restam luzes imaginárias a guiar escuridão adentro 

Começa enfim a reconstrução 

E é uma tarde de outono 

Mas alvorece 

No peito do homem 

Ainda bate forte o coração de menino

Sentindo sede de vida

E como na canção 

Eu vejo 

Onde eu estou

É tão bonito 

Porque eu estou livre.

 


Há ainda um tanto tão grande de céu 

Na alma fincada na terra 

Uma ressurreição

O cessar de um pranto 

Uma prece 

Sempre uma prece 

Com os dedos 

Os lábios

Os olhos 

Obrigado Deus nosso 

Pela misericórdia tamanha ao filho falho 

Pelos pés na areia morna 

Caminhando caminhando 

Pelo coração se curando 

Resistindo 

Descansando

Pela trégua tão implorada

Pelo amor que floresce no próprio peito 

E que finalmente basta.

10 de mai. de 2023

Tempos de trégua

 




A paisagem ainda é a mesma lá fora 

Mas já são as últimas palavras antes do ponto final 

Que precederá as páginas do novo capítulo

E eu sei que ainda há amor

Ainda há vontade e saudade 

Eu sei sobre a terra fértil que traz no peito 

Onde tudo tão facilmente se abriga 

E cresce

Floresce

Frutifica

E eu te amo por isso 

Te amo por tua fragilidade e constância 

Por olhar esse mesmo céu tantas vezes com o mesmo encanto do menino que já fora 

Te amo pela forma como se reconstrói 

Ajuntando tuas pedras e plantando tuas flores

Como disse a poetisa

Te amo por nada em ti ser extinto ou apagado 

Como disse o poeta

Pois por isso verá a alvorada despertar no horizonte

Completo 

Sozinho 

Ou nem tanto 

Ao teu lado e em silêncio teus anjos também fitam o horizonte

Sorrindo pelos tempos de trégua que se aproximam.

2 de mai. de 2023



Em um dia estava tudo bem

Eu via a esperança andando de bicicleta na esquina 

Já em outro

Não 

Era meio dia e os pássaros da manhã já não cantavam 

Algumas lágrimas escorriam 

Sem conseguir abrir a porta 

A janela 

O sorriso 

Deitado, esperava

Mais alguns minutos 

O fim de mais essa canção 

E tudo bem 

Sua falta se fazia um pouquinho 

Talvez mais que ontem 

Talvez menos que amanhã 

Mas a minha falta se faz muita 

Todos os dias

Cada vez mais

Por isso acendo a luz 

Alguns passos até a janela 

Está um dia bonito 

É dia sagrado 

Dia daqueles que constroem os pilares do mundo 

Bonito também 

Ouso dizer

O aguaceiro de palavras dos últimos tempos 

Elas

Quase as únicas a nunca irem embora 

A não desistirem de mim 

Ou eu delas

Disseram 

Sonhei com você em minha vida 

E nem a quem mais amei disse algo tão belo

O mundo fazia muito barulho naquele momento em particular

Você não me ouviu 

Mas há essa atmosfera de outono 

Um azul límpido e ameno 

A luz dócil por entre as árvores 

Uma oração sincera 

Como se Deus estivesse de frente a mim

Não distante ou universos acima 

Mas ali

Olhando nos meus olhos 

Então começo a me reconhecer novamente 

Lentamente 

No que fica após o dissipar das tempestades 

E ao menos neste instante

Não sei de algo que seja mais digno do Amor 

Do que isso que vejo.

30 de abr. de 2023



Quando voltava a mim 

Eu entendia que a vida não era feita no desassossego

Mas nesse tecer delicado das horas e sentimentos 

Fio a fio 

Amarrando como que construindo 

E aí a gente olha pela janela com o olhar cansado 

Com o coração encolhidinho

Só que vê a esperança andando de bicicleta ali pela esquina 

De joelhos ralados

Cabelo desgrenhado

Sorriso meio amarelado

Doidinha a esperança 

Mas uma menina ainda 

Depois de tanto tempo 

Uma menina ainda 

E a gente chora ao mesmo tempo que sorri 

Quando ela acena 

Lá de longe

Toda faceira 

Porque a vida 

Meu amigo 

Dói na carne e no osso da gente 

A vida dói pra frente e pra traz 

Dói assim como se a gente fosse de ferro 

Só que a gente não é

Mas é bonita a danada 

Tão jeitosa 

Que a gente acaba por se apaixonar por ela 

De novo e de novo

E quer dela mais um bocado

Mais um tantinho 

Mais um gole 

E ela dá

Dá um céu limpo e bonito desse

Dá uma lembrança formosa de uma última dança 

Dá uma estradinha por entre um jardim 

Dá inspiração 

Pra mais uns versinhos simplórios.

28 de abr. de 2023

Kintsugi

 


A alma

Como uma rara porcelana

Partida novamente em cacos pelo chão 

As mãos então ferindo-se na coleta dos pequenos preciosos pedaços 

Tão pequenos e afiados 

Mais uma vez 

É preciso pacientemente recolocar cada parte 

Juntar as peças

Retomar a caminhada 

Mas exaustas

As mãos tremem 

Exitam

Recuam

Um anjo fala-me então sobre a fé

E as montanhas movidas com seu simples sopro 

E as mãos seguram firme novamente

Insistem

Persistem 

Mas noto a falta de algo precioso para que se juntem tantas partes

Outro anjo fala-me então sobre o amor

E sobre sua poderosa capacidade de juntar o que está quebrado 

E como um fio de ouro 

O Amor cola cada fragmento partido

E aos poucos vejo formar-se o mosaico da alma

Distante de sua pura e intocada forma primordial 

Mas tão mais valiosa que outrora 

Por último falo eu sobre a esperança 

E a alma refeita sorri 

E eu vejo o mais belo e verdadeiro sorriso

Aquele que resiste

Mesmo nas noites de escuridão mais profunda 

E eu vejo o mais belo e sincero sorriso

Ainda que com todas suas imperfeições.

27 de abr. de 2023

 




Feito dito na canção

Você era como um amanhecer

Uma tão aguardada alvorada 

Eu era como uma chuva da madrugada 

Um desaguar manso e contínuo

 

Naquele momento

Eu contemplava a vida

Você a vivia

E as proximidades tornaram-se menores que as distâncias 

Quando já não se pôde perceber

Que a chuva que sempre caía,

Junto à luz inebriante do sol,

Fariam florescer na terra devastada do peito 

Um jardim de milagres 


São estranhos todos esses tempos 

Em que jogamos fora o que há de sagrado 

Diante de encontrar-se nele alguma imperfeição

O esculpir, o curar, o salvar, o cuidar

Parecem custar tão mais 

Que simplesmente

Virar a página 


E serão estes os últimos versos antes do silêncio 

Não que se calará o coração 

Mas cessarão as palavras

Para que não se macule a dor 

Para que não se faça dela algo menos bonito 

Para que não se reprise ininterruptamente

O mesmo dolorido adeus.

 


Há também algo de belo nos dias em que a luz se recusa a nascer 

Lembro-me dos teus olhos tão vivos 

Cheios de verdade e despedida 

Das mãos estendidas 

Do sorriso límpido

Das mais novas páginas sendo escritas

Formando outro doce triste capítulo 

E não pudemos caminhar de mãos dadas pela chuva 

Não pudemos...

Mas houveram centenas de pequenos momentos sagrados 

Pequenos segundos cristalizados em canções que agora tocam sem parar 

Minhas canções tristes que você tanto não gostava

Por não sentir nelas a dor tão bonita que eu sentia 

Agora os sinais estão fechados

É momento de breve espera 

E sei que logo chove 

Há de ser limpa a atmosfera de densas esperanças 

Que escorrerão pelos telhados e calçadas 

E por nossas ruas que ainda se cruzam 

Enquanto levam para longe os passos que deixei enquanto te buscava 

O tempo dirá, disse a mim... 

Mas eu começo tão bem a voz do tempo 

E ela sempre ocoa para cada vez mais longe 

Cada vez mais para o nunca mais.

Prisão das flores

 


Volta, assim, à prisão do teu quase belo jardim,

Enquanto lá fora o mundo resplandece em vida.

Volta, assim, teu olhar ao solitário longo caminho,

E segue...

Caminha, lento andarilho, 

Ignora outra vez a voz rouca, 

Cansada, 

Disso que leva pesando no peito. 

Acalenta a nova dor,

A nova dúvida, 

A velha certeza: 

Para ti, só o tempo de companheiro. 

E mesmo ele,

Se esvai.

Sinais da estrada

 


Os sinais pela estrada dizem que ainda estamos distantes de casa 

Velhas memórias e velhas feridas

Que não partem

Nunca partem

Também 

Os pés cansados em sapatos ruins reclamam do caminho infindo 

Só o coração ainda canta

Uma melodia fraquinha, delicada 

Repleta de notas de uma esperança quase boba

Mas a noite que se achega após a tempestade não deixa de ser bonita e perfumada 

E já não há pressa 

Há tempo de observar nuvens esparsas onde talvez ainda repouse algum anjo em justo sono 

Há tempo de admirar um ou outro jardim que resiste a florescer

Quem sabe dizer ao certo se são passados os tempos insanos 

Já que nas almas pelo trajeto vejo tantas máculas

Tantos adeuses 

Tantas lágrimas?

Quem sabe dizer ao certo quanto sobrou de nós? 

As respostas todas pairam distantes

Como a luz do poente que se rende à madrugada próxima 

Por um instante eu absorvo então a paz de um santo silêncio enquanto sigo

Lentamente

Sem parar

Em minha própria direção.

23 de abr. de 2023




Eu te observei abrindo aquele portão 

Depois de tantos anos 

De tantas vidas que só você viveu 

De tantas batalhas que só você perdeu e venceu 

E te vi novamente de olhos cheios de esperanças 

Quase forte o bastante para ignorar

Todas as tantas vezes

Que iguais a essa vez

Foram proferidas palavras encantadas 

Feitiços sutis dissolvidos em pequenos gestos que 

Como que por mágica 

Sempre deixam de existir 

E caminhou então pela rua escura 

Abaixo de uma chuva leve

Ignorando os alarmes 

Ignorando as canções tristes que já começavam a tocar na sua mente

Ao ponto que 

Em um instante de sonho 

Ousou um salto olhando para o abismo repleto de belas cores e doces promessas 

Mas instantes antes da precipitação

Olhou uma última vez o horizonte 

E as cantigas fascinantes vindas do abismo começaram a cessar 

Como sempre

Sempre

Cessam

Olhou então o horizonte...

E toda uma vastidão de vida ainda se esparramava por todos os lados 

E viu o próprio reflexo pelas nuvens e campos 

Viu estilhaços da própria alma bailando pela atmosfera 

Sentiu o perfume dos tempos que ainda virão 

E pensou que talvez 

Talvez 

Não fosse necessária uma nova queda 

Uma nova memória partida 

Para entender que 

Mesmo diante de toda sua imperfeição

Mesmo diante de todos seus pecados

Antes de qualquer salto 

Sentimentos verdadeiros colocariam asas em suas costas 

E não espinhos abaixo dos seus pés

21 de abr. de 2023

Canto de Ossanha



Um dia então você saiu a navegar

E jamais retornou 

Jamais voltou outra vez

Seu olhar para a costa 

E era agosto 

E foi então sempre agosto desde então

O mesmo inverno 

O mesmo ex-voto sendo esculpido 

O órgão nunca curado

O mesmo tempo inverso 

Correndo como que para trás 

À tua busca 

A mesma discreta loucura contida 

Revivida hora após hora

Enquanto

O vento salgado do porto corta a pele

Fere os olhos 

Racha os lábios finos 

E nada no horizonte 

Nada 

Nunca mais 

Apenas a linha de pálido azul 

Sem vida 

Tão contrária ao seu magnífico azul 

Repleto de promessas e utopias 

Nunca mais 

Ditas ou a mim oferecidas

Mas seu canto 

Canto de Ossanha

Entoando peito adentro

Por dias

Meses

Anos

Eternamente 

Quando o coração é incapaz de se jogar novamente

E crer novamente 

Porque nenhum abismo será profundo o bastante 

Será belo o bastante 

Já que ainda me lembro 

Tão bem e dolorosamente 

Do breve mergulho 

Na vastidão incomparável da sua alma. 




20 de abr. de 2023

Ainda sobre a mais bela dor

 


Quantas partes sobraram ainda para cortar 

Serrar 

Moldar 

Polir

Esculpir

Tirar

Para que se caiba no abrigo cada vez menor 

Mais abafado 

Sufocante

Mal iluminado?

No escuro que antecede a alvorada 

É difícil decifrar o que sobrou para diminuir 

Esquecer

Superar

Deixar 

Já que pelo que clama a alma

Paira distante 

Dissolvido no azul dolorido dos céus de outono 

E tudo isso 

Porque ainda trago a recordação de alguma outra estação 

Quando pensávamos que estávamos perto de casa 

Para logo descobrir um outro caminho tão longo em frente 

A ser desbravado a pés descalços 

E tudo isso

Porque ainda trago a recordação de um sentimento profundo

Intraduzível 

Pouco antes da conversão na mais bela dor

Pouco depois do sopro gélido da realidade. 


17 de abr. de 2023

 


Injustas palavras se precipitando em uma queda perigosa 

Seus olhos de céu profundo novamente em ronda 

Embora nunca mais se recordem da minha face 

Do meu pranto 

Do nosso adeus

E eu aceitei você para sempre dentro de mim 

Mas há noites em que você viola a jaula sagrada da alma 

E quase alcança novamente o posto que sempre será seu 

Até o fim dos últimos dias 

E eu me lembrei pela última vez 

Que ainda te amo. 



Uma prece

Uma promessa 

Deus meu 

Que não tarde a alvorada 

A luz então por entre as nuvens 

O calor na pele 

Talvez um sinal 

Estou aqui 

E sua voz continua digna de ser ouvida

E uma canção sobre coisas amadas

E partidas 

E o canto suave do tecelão 

Saltitando na jabuticabeira em flor 

E os primeiros sinais de uma tão aguardada ressurreição 

De novo e de novo 

Palavras e palavras 

A pílula sagrada para a alma cansada 

Um lágrima 

E outra 

Pois que a beleza da vida às vezes dói

Às vezes fere 

Misericórdia então 

Pai

Misericórdia e perdão pelos tantos descaminhos 

Pelo coração já não tão puro

Pela fé pequenina 

Mas firme 

Firme.

 


Não que houvesse ainda algum espaço para a ilusão

Não que houvesse ainda algum espaço para a esperança

Mas houve uma flor de vermelho intenso desabrochando 

Houve uma canção sobre um carro veloz cortando a escuridão 

Enquanto em raro momento de uma face bela da vida

Passos lentos em uma valsa calma

E uma chuva leve caindo após a longa estiagem 

E um rio morno de promessas tão bonitas

Cruzando um sertão cansado e de pouca vida

Um porto não distante de onde partir e para onde chegar 

Nos poucos momentos em que não se navega pelas águas bravas do presente 

Que tão

Tão lentamente vai se tornando passado 

Então novamente outono 

E tantas súplicas pela renovação 

E os erros e falhas e perdas 

E novas chances 

Então novamente outono 

E a fé na frutificação.

7 de abr. de 2023

Sê comigo

 


Os anos que diminuíram distâncias 

E aproximaram corações

Também me trouxeram até aqui,

Na manhã de um dia santo,

Resumindo todas as longas e elaboradas orações em:

Sê comigo.

Pois que aquilo que há de santificado 

Não mais paira longe no firmamento profundamente azul de outono,

Mas baila por cada célula da matéria, 

Cada fragmento de luz do espírito.

Em gratidão,

Em súplica,

Em alívio e em sonho:

Senhor, sê comigo.

Sê com esta pequena única lágrima 

Que desce morna e purificada 

Ante as primeiras tão belas luzes da alvorada,

Sê também com tudo o que veio 

Para logo partir,

Deixando apenas cicatrizes disformes,

Ruins,

Mas que hoje compõem os canteiros irregulares 

Onde cultivo as flores do meu jardim. 

Sê comigo, Mestre,

Para que eu caminhe em seus caminhos 

E leve comigo aquilo que será Amor.

Sê comigo,

Ainda que no dia da sua dor

Talvez fosse eu algum algoz 

Até entender 

Que sou menos,

Tão menos,

Que uma farpa da cruz que carregou nos ombros. 

2 de abr. de 2023

A fortaleza



Meu coração 

Como uma fortaleza fria 

Vasta 

Vazia 

O vento soprando pelos corredores 

A luz ínfima penetrando pelas frestas 

Pelas rachaduras 

Filhas do tempo 

Pelo chão

Restos de tempestade

De passado 

De cansaço 

De presente

Do futuro 

Que não alcanço 

Pelas paredes 

Retratos de dias ancestrais 

Sequelas 

O cheiro rude de memórias corroídas 

Mas então 

Você 

E a leveza

E a doçura

Vendo beleza em meio ao caos

Vendo grandeza na quase plena escuridão 

E assim suas mãos firmes 

Tateando 

Girando velhas chaves 

Destravando fechaduras

Abrindo uma janela 

Então uma porta 

E mais outra

Sorrindo

Cantando 

Anunciando 

Observando com olhos que brilham 

Algo de sagrado na construção antiga

Por todos esquecida 

Logo

Um sopro de vida 

Ao âmago partido 

Congelado 

Que lentamente se aquece 

E promete enfim

Relembrar-se da vida

E

Alvorecer uma outra vez.

31 de mar. de 2023

Pontas dos dedos

 


Talvez algo de sagrado ainda resida 

Nas pontas desses dedos cansados 

Embora já não os veja tocando o vento 

Desenhando poemas bobos de felicidade 

Acariciando qualquer face


Eles ainda dançam é verdade 

Rendidos a algumas canções 

Que o tempo não teve força de contaminar 

E eles ainda secam

Uma ou outra lágrima de alívio 

Ou de espera

Muita espera


E tudo isso que passa sem cessar 

Ferindo a pele e penetrando ao âmago

Purifica o que não se perde 

Mais palavras virão então 

Sobre coisas que não podem ser ditas.

27 de mar. de 2023

 São ainda tempos estranhos

Chega a ferir a profundida do azul desse céu de outono

No entanto, é um incômodo santificado 

Pois abaixo dele

A florista dava conselhos sobre a vida e o amor 

Ao homem de espírito alquebrado 

Que buscava orquídeas para sua amada que partiu

E quando o azul se fez breu

A sobriedade propôs sutil trégua 

Os suaves passos de dança 

Os abraços amistosos 

O passar suave das horas 

A boa música sobre pequenas e grande vitórias 

Tudo dizendo que talvez a vida não fosse assim tão terrível 

Como sempre, nos sonhos, a fuga

Mas nessa vez eu consegui escapar 

Do mundo que sucumbia a forças exóticas

E havia uma alvorada 

Uma rua iluminada pelas últimas luzes artificiais da noite 

Uma palavra

Uma proposta 

Um sorriso não visto

Alguém disposto a não desistir 

Uma chance 

Um talvez

Quem sabe?

De nascer de novo. 

14 de mar. de 2023

Lar

 Nos sonhos, sempre 

A busca, a luta, a súplica 

Pelo porto, pelo lar.

Os braços como paredes,

Envolvendo, abrigando.

As janelas como olhares,

Iluminando.

As portas como sorrisos abertos,

Sinceros.

A alma florida, feito jardim.

A fé, então,

Pequena, mirrada, preciosa.

Os joelhos ao solo,

Implorando, implorando,

Misericórdia, Pai!

Minha voz te alcança?

O fim do temporal,

O canto dos pássaros,

O desabrochar completo.

Porém, não ainda,

Não ainda.

O céu envolto em pesadas nuvens,

Um aguaceiro sem fim.

Alvoradas estranhas, com luzes cansadas.

O peito vulnerável, fechando, 

Emudecendo.

 Por um instante já não dói, porque posso sonhar.

Ressoam os acordes pelo fim da manhã de luz extrema 

Há uma voz, os cabelos ao vento

E a trilha sonora 

Para que dancemos nas nossas turbulências 

Rosas são entregues, abraços são dados 

Sorrisos são lançados 

E as nuvens que se movem sem pressa 

Parecem cantar sobre a ausência de finais felizes ou trágicos

Mas apenas sobre a vida sendo aos poucos reescrita, 

Renascida.

 Estenderia os dedos e alcançaria 

Se quisesse

Se pudesse 

E veria então nos olhos brilhantes o reflexo de mil estrelas 

E entre elas 

Uma maior

Após os hinos, canções, chuvas e trovões

O devaneio 

E se os tempos voltassem a não passar?

E se as noites voltassem a ser simples?

E se

Antes da realidade me colocar diante de espelhos que refletem completos opostos

Ousar-se um breve sonhar?

Apenas 

Apenas isso 

Até o dia em que o peito volte a ser o lar daquilo 

Que foi construído para abrigar.

10 de mar. de 2023

Superfície

 



Falará ainda sobre intensas alvoradas 

Lembrando talvez com leve sorriso das manhãs de ainda céu fechado 

De canções ruins tocando não muito longe 

E das tantas mesmas vozes

Mesmas faces 

Mesmos caminhos 

Mas já será outro, 

ainda que sendo o mesmo 

E já estará longe, 

ainda que no mesmo lugar.

Sei que já sente como velhos 

Esses seus novos belos sonhos 

Pois que quanto tempo mais a água tão acima dos olhos? 

Mas não tarda novo fôlego,

Suspira algum anjo

Não tarda a superfície.

4 de mar. de 2023

Alvorada

 


Sei que algum anjo ainda me olha com ternura, mesmo eu não soltando de suas asas antes da promessa de levar meus sonhos aos céus.

Não deixaram de ser tempos estranhos, mas olhando para trás eu vejo milhares de flores cultivadas pelos caminhos, centenas de páginas com poemas singelos levados pelo vento, flutuando na atmosfera, alcançando outros corações igualmente simplórios.

E eu me lembro de estar no mesmo lugar e de receber o mesmo abraço sincero quando a fala foi embargada pelo medo, e tempos depois, pela gratidão. 

Vejo então ao longe os primeiros pilares cintilantes se erguem lentamente, delicadamente, sem alarde, mas cortando a escuridão de uma longa noite sem estrelas. 

É possível que tenha chegado o momento de colher as luzes da Alvorada, de semear novas páginas, de reescrever jardins. 

E talvez, talvez junto às luzes você se aproxime também, e exista na sua face um sorriso de calmaria, e em seus olhos, finalmente, o brilho de um novo dia.


27 de fev. de 2023

Páginas em branco




Estamos longe do fim, pois ainda me lembro
Hoje o sol se deitava da mesma forma, nem mais nem menos encantador 
Mas havia, eu via...
Algo além do ordinário correr das horas
Pelas esquinas esburacadas e pelos antigos pátios 
As pessoas que passavam brilhavam 
Emanava delas algo de cintilante 
Como o ouro se destacando no cascalho abaixo de águas rasas 
Eu deveria sentir medo, alerta a mente 
São dias estranhos, densos, imprecisos 
Eu deveria sentir medo 
E senti, e sinto 
Mas vejo algo que talvez seja amor em todas essas coisas miúdas e preciosas que o tempo vai moendo como um moinho feroz e despejando na atmosfera das vidas
Só que ainda há estrada afrente 
Ainda há essa claridade meiga 
Algumas palavras desengonçadas dançando sozinhas no vasto e vazio salão da alma 
Há alguma prece sincera aos anjos que talvez não tenham voado para muito longe
Não estamos perto do fim, pois ainda sonhamos
Quem diria 
Ainda sonho também 
E no sonho
Há o abraço, a ternura, a cura, o lar
A remissão dos pecados 
E pelo chão, pelos muros e jardins
Esparramadas pelo peito
Pelo caminho desse longo túnel com  apenas uma vaga promessa de luz ao fim 
Há ainda muitas mais páginas em branco.

21 de fev. de 2023

Água turva

 


O tanto que foi dito e tudo o que permanece sem o contorno físico das palavras 

Parece pouco, menos que nada 

Diante do não poder segurar alguma mão

E trazê-la ao peito 

Para que seja um escudo, uma armadura, uma cura.

Chove como nunca,

Mas permanece flutuando na atmosfera tudo aquilo que o tempo transforma em pó,

Enquanto aqui embaixo o ar é tóxico,

Os caminhos são esburacados,

A espera tem o gosto do infinito.

Então de novo as ondas

E de novo

O mergulho 

A imensidão silenciosa 

Preenchida e completamente vazia como se fosse possível;

Água turva onde estão dissolvidas esperanças e causas perdidas.

Ainda assim a algo ou alguém emitirá orações 

Confusas missivas advogando por um espírito que se partiu 

Rogando por uma misericórdia que se sabe não merecer. 


Se vive sem saber

 


O que bate intacto no coração ainda sonha 

E lembra 

Uma estrada, um córrego, um sorriso 

O calor doce do sol sob a pele imaculada 

Não sei viver 

Digo

Não sei viver... 

Repito 

Esquecendo que se vive é mesmo sem saber 

Como o barco dançando junto às ondas 

Sem enfrentá-las

Como o jardim e suas flores sabendo desabrochar cada uma em sua estação 

Foi mesmo o último ato de liberdade

Aquele ato profano? 

Ou quando os olhos se fecham inundados 

E se abrem como comportas mirando o céu de profundo azul 

É que o espírito experimenta uma emancipação ainda apenas imaginada

Mas tão lúcida, desperta, desejada.