28 de out. de 2022

 


Os passos continuam pelas ruas

Só que mais lentos, desatentos,

Guiando olhares que esbarram em um horizonte repleto de enigmas.


A cidade é um coração que pulsa em silêncio,

Sem vozes, cansada,

Como um campo antes da batalha.


Mas há um hino, tímido, ecoando,

Prenunciando uma estrela que voltará a brilhar,

Falando de um povo ainda em riste, resistindo. 


Alguns dizem que adentramos para sempre em um reino sombrio,

Um vasto vale de desesperança sem volta,

Povoado por bestiais soberanos,


Outros, que a Luz não tarda,

E essa fria escuridão é o prelúdio da inevitável alvorada.

O sol se erguerá, iluminando as faces afáveis.


E eu rogo aos anjos que despertem do sono que um dia lhes permiti...

O santificado peso do amor arqueia nossas almas frágeis.

Mas antes o peso dele, que a leveza da indiferença.

25 de out. de 2022

 


Tudo já não tem nada 

Daqueles tempos simplificados 

Em que fabricávamos pequenas memórias preciosas 

E as guardávamos nas prateleiras da alma sem saber

Que não muito depois

O tempo nos cobriria com uma névoa amarga e densa de realidade

Quase nos sufocando 

Quase nos despertando 

Aqui dentro apenas temos vivido na espera de um velho milagre 

Que ao menos mantenha esse trem perigoso nos trilhos por mais alguns instantes

Enquanto lá fora hordas de lunáticos  fantasiados de palhaços malignos

Dançam sobre covas rasas e recentes

Mas como pequenas absolvições

A chuva no auge da estiagem

O jardim resistindo e florescendo 

A nova doce e forte canção 

Sobre sentimentos escarlates 

O cheiro do quarto sempre vazio

Estranho e bom

Como o perfume das cortinas daquela antiga locadora de filmes 

Em que íamos quando jovens

Então pelos corredores de lembranças pequenos brilhos despencam lentamente 

Uma garoa delicada acariciando o corpo envergonhado 

Que naqueles antigos dias talvez até tenha conhecido o amor 

Agora nos sonhos confusos

Há sempre uma mão entre as minhas mãos

Há uma fortaleza 

E há seu sorriso 

Embora sua face nunca esteja voltada para mim.

21 de out. de 2022

 

Como há muito não era e não deveria ser

O céu imóvel 

Sem poesia

Nenhum verso oculto por entre as nuvens estéreis 

E as canções

Tão novas canções

Quase sem emoção

Vozes delicadas se chocando 

Em grossos muros

Altos 

Altos

E sua face evanescendo na memória 

Fugindo do toque do meu olhar 

Sorrindo para o horizonte longínquo

Mas foi hoje

Mas também foi há mil anos

Tudo como no mesmo sonho confuso 

Que nunca termina

Que nunca começa 

É só a calmaria antes da tempestade 

É só o tempo roubando as cores da realidade

É só a chuva lavando as fantasias 

Derretendo as máscaras de papel

Mostrando os rostos impecáveis

As almas deformadas 

É só a chuva purificando o ar e adoçando a atmosfera 

Perfumando, desacelerado

Cantando 

Enquanto no labirinto da mente 

Os fantasmas se descobrem

Deixam seus velhos lençóis pelo chão 

Suas correntes sobre os móveis danificados 

E vão caminhando enquanto tocam a minha mão 

Ao menos eles

Entrelaçando nossos dedos

Em direção a uma saída daqui.

3 de out. de 2022

 


Pessoas melhores viveram tempos piores, e se hoje ainda temos direito ao grito, e gritamos, é por esses que gritaram antes, até perderem a voz. Gritamos hoje por aqueles que tiveram suas vozes usurpadas, caladas, pela fome, pelo descaso, pelas políticas de morte alimentadas por veias contaminadas de ódio e escuridão.

Gritamos, até que nossa voz seja temida. 

E choramos, como não? 

Por desespero, por alívio, por esperança. 

Mas choramos abraçados, como irmãos.

Porque não estamos presos em uma sala de espelhos, onde só nosso reflexo existe por todos os lados. 

Vemos o outro. 

Somos o outro;

Ainda que o outro tantas vezes não nos veja, não nos seja;

Ainda que o outro, tendo a mesa farta, jamais sinta algo sobre quem nem a mesa mais tem. 

Agora as ruas estão silenciosas... Talvez pelo prelúdio da batalha, talvez pelo cansaço das almas, talvez por um luto que parece nunca ter fim.

E assim chegamos ao mês da Doce Mãe... Olhando o horizonte como pequenas crianças perdidas, como filhos confusos presos em vórtices de sentimentos.

Em meio a isso o perfume das manacás atravessa as grades e hostilidades, apascenta os corações em busca de trégua. 

Esperamos então... Mas não afiando espadas e alinhando escudos, esperamos de mãos dadas, novamente, como irmãos; em prece, os que têm fé, com a bandeira da cor do sangue em riste, os que têm coragem, com o peito aberto, os que têm Amor.