28 de dez. de 2013

"Processo ex-tático"


Deitei-me naquele véu pálido de luar,
E nos meus silêncios tão inquietos gritava por socorro.
Mas nada doía, nada queimava,
E era esta a dor mais insana, a chama mais faminta:
O não doer, o não queimar.

Deite-me no véu pálido do luar
Porque qualquer braço, qualquer ombro, qualquer peito
Se fazia distante demais.
Tão distante quanto o luar sobre a terra úmida 
É do seu foco de nascimento. 

Deitei e adormeci.
Os sonhos, cavalgantes, não demoraram.
Em instantes, mais heróis, monstros, asas e correntes
Que se possa contar!
Minha alma deleitando-se de suas quimeras...

Desperto, o silêncio.
Mas chegou a chuva; caindo melodiosa como boa música 
Sobre este telhado que não abriga mais meu verdadeiro lar.
Havia o cheiro e a saudade de um futuro desconhecido, aguardado.
Havia a mim, incompleto e lento, mas vivo.

27 de dez. de 2013

Promessas de Ano Novo


Um último minuto para as mesmas canções.
Um minuto de paz.
Um perfume oculto que devolve a divindade que um dia meus sonhos
possuíram.
Um momento para chorar meus adeuses, para sorrir minhas escolhas.
Observar com todo carinho cada um dos brotos do jasmineiro à minha porta.

Restará para sempre em mim aquela estrada junto do seu cheiro.
Restará em mim a humildade esculpida nas mãos, o elogio singelo.
Restarão em mim o abraço desejado e a lágrima que não evidenciei.
Olhe em meus olhos, colha seu perdão.

Um instante para agradecer a lição que trouxe cada uma das minhas
cicatrizes; um instante para agradecer a fé que retornou depois das várias
estações em que esteve dispersa.
Amar, com todo meu coração e alma, todos aqueles que acenderam estas
pequenas luzes que existem em mim.

Permanecerá em mim a criança; não a criança que sentia medo e vergonha, mas a criança que sabia voar.
Permanecerá em mim o beijo, o gosto.
Permanecerão em mim todos os instantes de contemplação das estrelas, dos imensuráveis milagres sutis.
Um tempo para parar, tomar fôlego, reciclar o brilho do olhar e mergulhar com toda força novamente neste oceano obscuro e fascinante que é a vida.

Renascerá em mim a esperança, a admiração pelos sorrisos ingênuos e
olhares doces, iguais aos dos anjos.
Renascerá em mim a voz dos Heróis que partiram sem se despedir: eles
voltam, eles voltam...
Renascerá em mim a claridade perdida, as asas murchas, o amor.
O Amor...


De "Em meu Jardim Secreto..."

26 de dez. de 2013

Louvores


Louvado seja o caminho desprovido de sentido e de fim, com todos seus
adeuses não ditos, guardados.
Louvada seja a poesia que cura, a palavra que salva. A poesia que me encontrou, a palavra que me foi dita.
Louvada seja a lágrima que salta confusa por culpa do solavanco não previsto, e marca meu rosto, escorre por minhas pernas e purifica meus passos.
Louvado seja meu medo por sua prudência e ainda mais louvada seja sua
amada filha bastarda: minha ousadia.
Louvada seja a espera fria e firme como pedra, assim como a esperança frágil e bela como flor. Louvada seja, insisto, a esperança: minha substituta para o Amor.
Louvada seja também a fé. A fé que ilude e que salva. A fé que cura e que
enlouquece. Louvada seja; embora as tantas mentiras que transformou em consolo e as tantas verdades que transformou em cinzas.
Louvadas sejam as transformações, das ínfimas às imensas, pois que são o
sobrenome da Vida.
Louvadas sejam até mesmo a dor e a saudade, já que fazem recordar, nós, seres frios e brutos, que temos um coração, uma alma.
Louvados sejam os olhares que se cruzam e permitem frutificar primeiro os sorrisos, depois as canções, por fim, o sentimento...
Louvados sejamos eu e você, o eu que existe, o você que invento.



De "Em meu Jardim Secreto..."

25 de dez. de 2013

Perdoo


Eu perdoo minha dor, mesmo tão amarga em meus lábios, rançosa. 
Pois é como terra fria onde, se Deus quiser, algo vai crescer em direção ao sol.
Eu perdoo minha fome, insana, atroz, mesquinha.
Porque talvez, quem sabe, seja ela que me obriga a não desistir. 
Eu perdoo a ausência, pois há vez que é tão bonita a saudade. 
Eu perdoo a distância, pois é bom saber-nos correndo ao encontro. 
Eu perdoo o silêncio, porque ele não tem culpa de nada...
Eu perdoo a dúvida: serei eu a água evaporada que comporá as nuvens para o próximo temporal? Se sim, não trarei apenas desconforto, ventos e pavores, também aguarei o girassol da calçada. 

Eu perdoo também o medo, mas só porque um dia ele passa...




De "Mais de mil palavras - A poesia da imagem"

23 de dez. de 2013

"Ser como o rio que flui"

A vida é tão longa,
E nós, tão precipitados.
Poderíamos ter sofrido depois de viver e sorrir tanto,
Mas escolhemos sofrer antes de sorrir e viver.
Poderíamos, talvez, nem sofrer.

Quem sou eu para questionar tão sólidas razões?
Um mero passageiro para a Terra do Nunca.
Mas eu escolheria uma imensa dor, adornada de flores de doces memórias,
A uma dor menor adornada de espinhos de expectativas não cumpridas.

Quem somos nós para definir para que lado devem seguir os rios?
Há os que descem, há os que sobem, há os que desafiam o que deles é esperado...
Mas todos, todos serão mar...
Talvez também fôssemos mar um dia.
Mas não saberíamos disso se não fôssemos doces e leves riachos antes.

Não carregarei mais outra culpa.
Estou aqui, e estou tão vivo.
A porta está trancada, mas as chaves estão nas minhas mãos.
Bata, e eu abrirei.

22 de dez. de 2013

Confesso


Assumo a culpa que nos cabe, fique livre.
Lembre-se de mim como o gentil covarde.
O hesitante cavaleiro...
Não será um julgamento injusto, não mentirás.

Aceito o sangue nas minhas mãos após o estrangulamento do sonho.
Aceito.
E se me justifico é por ter as palavras soltas demais, apenas.
Se justifico, diferença nenhuma fará mesmo.

Que é a vida, meu bem?
Uma colcha de retalhos tão confusa, esburacada.
Ontem era amor, hoje é distância.
Ontem era intensidade, hoje, só saudade.

Vamos nos habituando aos absurdos, não é mesmo?
O absurdo de partir, o absurdo de ficar.
Viver, apenas viver, já é um contrassenso.
Não é, meu bem?

Mas a gente vive. Ou pensa que sim.
E segue. Segue aceitando os sacrifícios.
Aceitando as perdas, aceitando ser mal visto.
A gente vive, porque tem que viver.

Não te esquecerei, meu bem.
As lágrimas que brotaram continuam presas nos olhos.
E um instrumento em particular sempre se sobressairá
Em qualquer canção. Fará um sorriso sutil nascer...

Dói, meu bem.
Mas passa; deve passar.
Hoje, por exemplo, nem chorei.
Mas também não deixei de te amar.

15 de dez. de 2013

Febre


O corpo é sempre dócil e pacífico,
Já a alma, arde, crepita, flameja.
A alma escorre lentamente pelos poros, pelos cheiros e desejos,
Como lava sanguinolenta, como ouro líquido, como dor desejada.

O corpo então transpira, reage, enrijece. 
Clama, suplica, contorce-se,
Mas a alma não ouve, não sente, não percebe,
Apenas queima... queima... queima!

É a libertação!
É a fênix ressurgindo em chamas absurdas!
São as feridas, imensas, profundas, sendo cauterizadas.
E as lágrimas vaporizam-se antes de despencarem dos olhos...

Sou eu.
Recebendo os milagres pelos quais roguei, 
Um a um, lentamente; como previa o vidente.
Sou eu...

Decompondo-me, tornando-me cinza, adubando-me; gemendo.
Gritando no mais absoluto silêncio.
Sou eu; e é você dentro de mim e por mim todo.
Sou eu, talvez finalmente, vivo.

14 de dez. de 2013

Quem me dera ser vento


Quem me dera ser vento...
Para cavalgar pelos picos e campos,
Acariciar faces e flores,
Secar lágrimas e espalhar perfumes.

Quem me dera ser vento,
Para afastar nuvens densas,
Fazer bailar os cabelos,
Levantar pássaros e pipas.

Quem me dera ser vento,
Para estar mais próximo,
Estar por você todo,
Refrescar sua pele ao me sentir.

Quem me dera ser vento,
Para não estar confinado, limitado.
Quem me dera ser vento,
Para não ter medo.

Quem me dera ser vento,
Para ser eu mesmo.
Quem me dera ser vento,

Para ser livre.

10 de dez. de 2013

Eu, palhaço



Não preciso ser mais forte que nada, não preciso ser mais belo que nada, não preciso ser mais que nada. Preciso apenas ser eu mesmo, e zombar disto.
Seu pranto se dissolve no meu sorriso.
Minha máscara é a menor do mundo.
Sou mais estado de espírito que Homem.
Sou apenas uma coisa, tanto por dentro quanto por fora: sou infinito.
Sou o prazer do risco torto de maquiagem forte no rosto; sou o único que consegue fazer rir a dor do ser humano.
Não tenho um lindo sorriso, mas nunca deixo de sorrir.
Não tenho poder mágico, mas nunca deixo de fazer sorrir.
Meu espírito é todo de florinhas douradas que são entregues a todos que
cruzam com meu caminho, com meu olhar, com minha alegria.
Aprendi a brincar de viver, brincar de amar; brincar de ser menino, brincar de ser gente grande.
Sou o que atravessa o mundo, mas nunca sai completamente do lugar.
Sou multiplicável.
Sou a pureza que cresceu; a inocência que não aceitou ser perdida.
Meus sapatos compridos e coloridos jamais serão usados para pisar em
alguém.
Minhas roupas brilhantes são pinguinhos de luz na escuridão do mundo.
Meu coração é um pedaço de doce que quanto mais se divide, mais aumenta.

Minha alma é pura felicidade.

7 de dez. de 2013

Pequena Tristeza


Ó pequena Tristeza, doce princesa, não se aproxime, não se aproxime tanto de mim.
Deixe-me ver o sol se pondo sem me importar com o local onde ele irá dormir.
Deixe-me caminhar com meus passos leves e lentos pelas avenidas vagas,
sentir o perfume dos jardins simplesinhos, o cheiro da refeição saindo pelas janelas.

Ó pequena Tristeza, velha conhecida, deixe-me de olhos abertos para os ínfimos milagres.
Deixe em paz minha tão bonita Fé no amor.
Deixe reluzir a ínfima claridade do meu espírito pequeno.
Deixe as crianças correrem ao meu redor.

Ó pequena Tristeza, fiel companheira, não faça barulho,
Deixe meu Medo dormir seu sono justo.
Caminhamos tantos anos juntos, 
Em tantos momentos era ele meu único e bom amigo.
Deixe, deixe meu Medo sonhar com a Coragem, seu amor platônico.

Ó pequena Tristeza, bela e fria donzela, sente-se aqui.
Ouça esta canção tão bonita...
Você não é má-vinda, eu até admiro sua beleza, sabe disso.
Já tivemos nossos bons momentos, lembra?

Mas eu peço, de toda alma, pequena Tristeza.
Ouça apenas mais esta canção,
Roube apenas mais este sorriso,
E vá de volta...
Vá de volta para o canto que já herdou em meu coração.

6 de dez. de 2013


Está tudo aqui dentro, acontecendo ao mesmo tempo: agora.
O adeus não dito, bendito.
O amor, sutil e puro, como o orvalho da manhã sobre os capinzais,
após as tempestades da noite quente.
O desejo, perfumado e incendiário, como as damas da madrugada;
uma brasa acariciada pelas mãos.

Você... um diamante, reluzindo do alto de uma montanha coberta por cerejeiras em flor; 
e eu, um simples peregrino de trilhas poeirentas, trilhas já à beira do esquecimento, 
olho para cima, humildemente, desejando mais e mais daquela luz tão distante e tão, tão próxima.

Olhando levemente os passos dados, vejo que os últimos antes desta maravilhosa visão não aparecem no chão;
Sei bem o porquê:
É meu coração que já não batia, pois um dia lhe disseram: não há o que valha!

Mas há! E como há!

O que não há é saudade de qualquer jardim outrora cultivado; 
abençoados e rigorosos invernos e verões deram cabo de todos.

Há... Há saudade do futuro.
Saudade do sabor ainda são sentido; imaginado;
Da canção ainda inaudível, não composta, não tocada,
Do sorriso ainda não visto,
Do olhar que ainda não acariciou meu olhar.
Há saudade do brilho desse diamante que minhas mãos ainda não alcançaram, mas que meu coração, revivido e pulsante, já guarda dentro de si...

Como um farol,
Como a lua,
Como o sol.

3 de dez. de 2013

Blues


Sonhei contigo numa certa tarde poeirenta. 
E enquanto segurava suas mãos, admirava seu sorriso, ainda tão distante, suavemente eu suspirava: Jesus Cristo, de onde quer que esteja, eu sei que você continua velando por nós...
Em meio aos meus fracos poderes mágicos, escalagens nos céus, volitações sobre os campos de flores; estava contigo...
Então passei a nos sentir juntos todos os dias. E em alguns dias, em todos os instantes.

Você estava no meu café da manhã, no alimento que saciava as sutis necessidades do meu corpo enquanto eu admirava o céu e sentia a brisa que vinha pelas frestas da janela.
Estava nas canções que penetravam em meu âmago e explicavam tudo de mim... saciando minha alma.
Estava no descer a rua à tarde com o sol se pondo às costas, enquanto meu coração me dizia para apenas fugir, fugir, fugir...
Estava na luz artificial que iluminava meu quarto à noite enquanto eu rabiscava minhas poesias tortas; já estava em toda minha existência, esta que até então ninguém nunca pôde provar que realmente é uma vida.
Estava em todas minhas flores que nasceram e murcharam, e na minha história que nunca deveria ter sido contada.
Estava na mais esplendorosa quimera que minha imaginação seja capaz de conceber, e no simples desejo de estar ao seu lado numa sessão de cinema, em algum domingo quente desses...

Está no blues que nasce quando toma fôlego minha dor...

Estava no semblante calmo e na voz serena da menina, que após ter a sua vida salva pela esperança, cantava: Esta minha luzinha vou deixar brilhar, vou deixar brilhar. Escondê-la sob um alqueire, não, vou deixá-la brilhar...


29 de nov. de 2013

Luzes mortas



As lembranças permanecem, como o céu.
Lembra, aquele céu que sempre admiramos?
Mas assim como o céu está repleto de luzes mortas,
Estrelas que se foram,
Assim está o passado...
Repleto de fotografias amareladas vagando num lago calmo e azul.

Dizem que o verdadeiro amor nunca parte,
e se parte,
nos leva toda a claridade,
Dizem tantas coisas... que nem sei.

Sei que estou aqui, partido.
Com ou sem o que foi o amor.
Mais provável que sem, porque quando deito naquela cama ao lado,
Já nos altos da madrugada,
Sei que ninguém está a pensar em mim.
Sei que não haverá com quem dividir neste momento 
a garrada do saboroso vinho já envelhecido sobre o guarda-roupas. 

Toda noite estou a caminhar por este cemitério de estrelas e lembranças,
Até que o sono vem, e o espírito viaje, tão liberto desta carne suja, 
até seus paraísos eternos e instantâneos.
Todos os dias são como uma luta feliz,
Todas as noites são como uma paz tristonha.

Mas foi-se o dia, e a noite, minha amada amiga, é sempre bem-vinda.
Mesmo tristinha, mesmo com suas estrelas mortas... 
mesmo com a saudade de um sonho que não será sonhado mais.

26 de nov. de 2013

Novo mundo

Houve aquele tempo em que havia tempo para molhar o olhar de lágrimas enquanto o sol ia deixando-se esconder pela baixa colina.
Houve aquele tempo em que o coração velejava num mar tão vivo, colorido e perfumado de ilusões...

Mas que novo mundo é este em que aporto?
Que ruas são estas? Que juízes são estes? Que gentes são estas?
Tudo tão rude, amargo, autoproclamado perfeito.
Agora o coração se aloja fundo no peito, esconde-se, 
como se sua própria natureza fosse criminosa.
Como se as flores fossem culpadas por serem amarelas ou vermelhas,
perfumadas ou desprovidas de perfume.
Como se as flores fossem culpadas por terem nascido flores.

Nunca doeu antes, por que dói agora?
Nunca doeu tanto a ignorância alheia, o julgamento desprovido de sentimentos alheio.
Como é estranha esta terra, onde o errado condena o inocente enquanto esconde as próprias mazelas.
Como é estranha esta terra, onde uns desejam o sangue dos outros.
Por pura sede, por puro prazer!
Como é fria esta terra...
Como é escura...

Não negarei meu desejo de voar!
Meu constante e ancestral desejo de regressar às Terras do Nunca.
Para sempre rogarei as asas que jamais me serão dadas!
Para sempre serei o caçador de um tesouro inexistente!
Eu ouvirei as vozes nas ruas,
Olharei nos olhos,
ainda assim.
Desejarei, talvez por mais que alguns instantes, estar imerso naquele abraço:
Aceito, acolhido, nutrido, acalentado.

Não há coração que não pare às vezes.
Não há sonho que não nos exploda de ansiedade.
Não há esperança que morra para sempre.


24 de nov. de 2013

Nada


Foi a transitoriedade da eternidade que me deixou assim:
Perplexo. Mudo. Pacífico. Resignado.
Fugindo por querer ficar, enganando a esperança com flores de papel,
Despedindo por querer amar.

Quando a noite deita, junto de nuvens e raios, sobre os telhados,
Tudo parece ser mais difícil.
Os sentimentos do passado, mais doces do que realmente foram,
A solidão do presente, mais amarga do que realmente é.

Sinto medo é deste não sentir.
O susto que não vem quando os raios estouram lá fora,
O controle absurdo sobre cada passo, cada palavra, cada músculo.
Para o que me guardo? 

Sinto medo é desta espera,
Como se houvesse uma estação mais florida à frente,
Como se novos perfumes fossem adentrar pela janela.
Não, nada baterá nesta porta. Apenas o nada.

Também não haverá próxima estação, enquanto este for o mesmo.
Também não haverá mais qualquer poema de amor.
Também não haverá o adeus ou o olá.
O também... o Também não haverá.

21 de nov. de 2013

Bandeira branca


Não se sinta mal; se você ainda guarda algo de valioso seu dentro de mim;
com a bandeira branca pendurada na minha porta.
É tão simples: o tempo das lutas inúteis passou.
Quem bater nesta porta será recebido em paz.

A lições que o fogo e o sangue deixaram permanecem.
O líquido que borbulha em minhas veias continua mais apaixonado pela vida do que nunca.
Nada em mim está morrendo, nada em mim está desistindo.
Ao menos não desistindo de si mesmo.

Sempre fica a amargura depois do fim.
Sempre é eleito um culpado mesquinho diante da perfeição suprema da outra parte.
Tudo bem, eu entendo. Talvez, pouco tempo atrás eu até concordasse.
Entregue a culpa numa caixa dourada e coloque num cômodo vazio qualquer desta casa suja, num lugar onde não me atrapalhe dançar, por favor.

Logo partirei para tão longe e nenhum arrependimento, nenhuma culpa será levada na mudança.
A caixa dourada e tão pesada ficará no mesmo lugar, até que se decomponha.
Convidarei amigos e heróis, carregaremos as flores e os seis gatos.
E novos sonhos irão ser adubados com todas as histórias que foram morrendo com o tempo.

E o amor... o amor retornará a ser a busca mais doce e inútil.
E a busca... a busca retornará a ser o amor.
Minúsculos instantes levados como pétalas pelo vento...
Instantes tão bonitos e irreais.

17 de nov. de 2013

Trancado


Eu tranco a porta.
Eu não digo adeus.
Eu esqueço a dor.

Desta página em branco não jorrará uma obra-prima.
Daquele telefone não sairá mais o som de uma voz que aqueça meu sangue.
Deste Jardim não sairão rosas para mãos quaisquer. 
Deste coração não sairá mais um sinal pedindo socorro.

Serei eu meu infinito, meu reino, minha paz.
Adianto desculpas pelas obrigações que impus ao seu peito.
Nenhum herói será novamente rogado.
Nenhuma canção de chegada ou despedida será cantada por estes lábios.

Desta vez também não aceito a presença da solidão; fiel amiga.
Da autopiedade, autocomiseração; coisas tão não excitantes. 
As lágrimas que escorrerem. estão por conta delas.
O que sangrar, sangrará por si mesmo.

Ainda que os desejos borbulhem, como a lava lenta e infernal dos vulcões.
Ainda que filetes de saudade volta e meia escorram pelas paredes rotas.
Ainda que a fé tenha partido antes do previsto, outra vez.
A porta permanecerá trancada até que a verdade bata nela.
Caso a verdade exista...

16 de nov. de 2013

Instante


Nos abandonamos reciprocamente, lentamente, dia após dia, semana após semana, mês após mês... Até não restar nada, nem dor, nem amor, nem culpa.
O fim veio silencioso como a noite; chegou, restabeleceu o silêncio que já queria imperar, traçou as linhas e limites de distância.
O fim não é algo tão triste quanto dizem. O fim é algo brando e pacífico. Apenas uma etapa.

Talvez meu amor volte a ser um amor pela procura.
Isso não era de todo mal.
Não posso negar a beleza disso, embora doa.

Como nesta noite, naquele sonho, em que um abraço desconhecido envolvia todo meu corpo e minha alma e eu me sentia intra-útero novamente, ou aninhado, ou soterrado, como uma semente aguardando a primavera.
Aquele abraço que, meu Deus, era tão pouco e ao mesmo tempo, tanto!
Um abraço suave, frágil, ermo, delicado, como as pétalas das minhas flores simples, e poderoso como os trovões que rugem no céu cinza lá fora deste quarto escuro que sou.
Nem mesmo as palavras, as palavras que gostamos tanto de despejar aos sete ventos e por qualquer motivo, foram necessárias.
Apenas o instante foi necessário.
Apenas a desnecessidade de compreender, ser, fazer, conquistar, foi necessária.

Mesmo que os anjos, com sua aura prateada, fossem invisíveis a estes olhos sujos.
Mesmo que os demônios estivessem liquefeitos sobre os lençóis.
Mesmo em minha infinita confusão e desejo e medo e pequenez e grandeza...

Havia o instante, e o instante foi tudo que precisei para ser salvo.
Outra vez.

4 de nov. de 2013

Inominável


Soa tão estranha a possibilidade de ter aquele mundo de volta.
Reabrir os portões enferrujados de um infinito que há muito tranquei.
Ouvir todas as canções que foram escondidas, enterradas bem fundo.
Sentir novamente sensações que adormeceram silenciosamente, dia após dia.

Ver as tulipas brotando ao derreter da neve...
Ver os galhos aparecendo ao cair das folhas...
Ver as flores que mais amo murchando, morrendo...
Ver sementes caindo no solo seco, duro, quente...

Ter todos os sentimentos enlouquecidos e libertos.
O coração, quem diria, continua quente e bate e roga e acelera, mas também quase para.

"Aqui vem a chuva novamente...
Caindo sobre minha cabeça como uma memória.
Caindo sobre minha cabeça como uma nova emoção."

A solidão, companheira gentil e elegante, dá leves batidas na porta.
A esperança valsa no meio do salão.
O medo adormece, entorpecido, numa poltrona empoeirada.
O amor se despede, diz que partirá ainda esta noite, mas fica para mais uma bebida, e mais outra, e mais outra...

Peço então que todos deem espaço, levanto-me e caminho como que reconhecendo um caminho que sou eu mesmo.
Toco as flores que sou, e os espinhos que sou, e os perfumes e os azedumes.
Toco fundo, como se não doesse tanto, penetro, perfuro.
E no fundo, bem adentro de tantas camadas, não há nada...

Não há nada além de muito sentimento, muito sentimento inominável.

30 de out. de 2013

Chegou o momento



Chegou o momento de ouvir todas aquelas canções de despedida.
As canções doloridas de adeus.
Chegou aquele momento de dizer: "Dói tanto... mas ficará tudo bem, um dia.".
Chegou o momento de lembrar que o para sempre, sempre acaba.

Os curativos necessários eram tão pequenos.
Os cortes eram tão rasos.
As fraturas, apenas trincos ínfimos.
Mas chegou o momento... E nós somos fracos demais perante ele.

O amor às minhas flores não impede que murchem e morram...
Porém, como é possível carregar o amor; um amor maior que o peito;
Mas não saber amar?
Bem que tudo poderia ser apenas um sonho ruim, outra vez.

Mas chegou o momento de guardar o porta-retrato,
Minimizar os focos de memória,
Não esperar mais sua ligação na hora marcada,
Não dizer mais as mesmas palavras ensaiadas, necessárias, pouco sinceras.

Chegou o momento de reconhecer que não nos conhecemos de fato,
Reconhecer que tememos um ao outro e tememos a nós mesmos.
Chegou o momento de tirar do campo de visão sua toalha de banho,
Chegou o momento de tirar sua escova de dentes do lado da minha.

Chegou o momento de assumir a culpa que cabe a cada um.
Chegou o momento de olhar outros olhos e outros corpos buscando algo que não será mais encontrado.
Chegou o momento de perder toda fé e toda esperança.
Chegou o momento de reencontrar toda fé e toda esperança.

Não perdemos nosso amor, 
não perdemos um ao outro,
Nos perdemos de nós mesmos...
Então chegou o momento do fim.


28 de out. de 2013

Capítulo de despedida


Todas as belas esculturas que perambulam por aí já não impressionam meu olhar.
Tudo está muito cheio ou muito vazio, nada está certo, nada está completo, nada se encaixa. 

Fizemos do nosso amor uma guerra silenciosa.
Como todos em algum momento fazem...
E nos achávamos tão diferentes dos demais.
Não somos.
Mesmas dúvidas, mesmos erros, mesmas culpas.
Quem está mais certo? Quem disse mais besteiras? Quem foi o primeiro a desistir?
Somos crianças tolas que mal sabem onde fica o próprio nariz.

Você chega endurecido, depois amansa.
Eu chego confuso, e confuso permaneço.
Devemos virar outra página ou trocar de livro?
Quanto de nós ainda permanece o mesmo?

O velho sonho se tornou uma esperança rançosa.
Talvez apenas mais um adeus, talvez o pior dos adeuses.
Foge da lógica enterrar algo ainda vivo.
Mas estaríamos nós realmente ainda vivos?

27 de out. de 2013

Supernova



É preciso abrir as janelas, tirar o pó do chão, enterrar os mortos.
Depois faço isso.
Parti, desisti, não arrependi. 
Deixei o sol, embora seja o sol, deixei o sol.
A luz cansou minha fé frágil.
É preciso dizer adeus agora, morrendo de medo, morrendo pelas promessas eternas não cumpridas.
A chama eterna que se apagou, o infinito que durou o necessário.
Dar boas-vindas ao novo eu que vem gingando confuso e leve de cima para baixo, de baixo pra cima.
Deixemos os protocolos, documentações, arquivamentos, oficializações e adeuses.
Vamos assim... de mansinho... aceitado a verdade que está de mãos dadas conosco.
Como Marisa... "Bem que se quis..." e vamos nos afastando e deixando as lembranças cantarem o fim da canção.
Nós quatro, eu, você, verdade e a ilusão.
Não te entregarei a culpa, também não ficarei com ela.
Não somos culpados pelo sol nascer e morrer,
Não somos culpados pelas estrelas surgirem e desaparecem atrás das nuvens escuras.
Não somos culpados pelo tempo que vem e nos transforma em outros sem pedir permissão.
Você sempre foi o anjo mais próximo, o detentor absoluto da minha vida e do meu sorriso.
Agora, neste momento, eu serei meu detentor, e você o seu. 
Coisa que já somos há certo tempo.
Somos agora uma supernova. 
A estrela que éramos será mãe de tantas outras.
Um dia, quem sabe.
A memória jamais partirá, ainda veremos nosso brilho no céu por tanto, tanto tempo, embora não estejamos mais lá.
Cumprimos nossa missão, fomos heróis tão presentes e poderosos.
Já não somos mais vítimas em perigo... 
Deixe que a vida venha e nos coma, ainda assim sobreviveremos nas entranhas dela.
Há tanto a dizer, e não deve ser dito.
O amor ainda está aqui, mas agora ele é outra coisa.

4 de out. de 2013

Fragmentos



Os olhos se tornaram uma represa onde os dias vão depositando seus detritos amargos, suas desesperanças.
A fé se tornou uma certeza tão frágil, um alicerce tão raso. 
Mas ainda está aqui.
De uma coisa estou certo, não é Deus que nos perdoa, somos nós que nos perdoamos ou condenamos.
Todos partindo e nada parece estar no lugar correto.
E as migalhas que sou parecem ser tão pouco para manter vivo nosso amor.
E eu sinto tanto, eu sinto tanto...

Aquela voz tão doce dizia temer minha desistência.
Aquela face tão amiga não quer me ver despedaçado de vez.
Como foi bom abrir minhas comportas, ter você para ouvir minha história por um instante.
Eu ainda estou lutando, mas pacificamente. Eu estou tentando, mesmo lentamente.
Eu sei que existem fragmentos de Deus dentro de mim, dentro de todas as coisas;
É que nem sempre é fácil encontrá-los.

Promessas não sairão mais dos meus lábios, tentarei ser uma versão mais concreta de mim mesmo.
E estes mesmos olhos, que agora jorram uma mistura límpida de medos e esperanças, 
observam as flores perfeitas pelo caminho.
Nunca colherei nenhuma delas, nunca serei nenhuma delas.
Eu apenas desejo passar um tempo num lugar onde não existam ataques.
Eu apenas desejo um pouco de silêncio na minha mente escura, repleta de cacos de vidro.
Estou partindo para me proteger de não ser eu.
Eu os perdoo, eu me perdoo.
Todos somos crianças tão tolas, crianças tão tolas...

1 de out. de 2013

Buraco negro

O passar dos dias se tornou um buraco negro.
E eu, que sempre temi o escuro e o desconhecido, fui sendo fragmentado e sugado...
Pensei que era o fim a me esperar, depois que desapareceram para negro infinito a esperança, a fé, os sonhos, até quase o amor, o que restaria?
Partículas, pequenos pedaços, fragmentos, lascas... lentamente dissolvendo-se.
Segui o mesmo destino, adormeci nos braços de uma noite libidinosa, sedutora, morna, silenciosa, e essa noite me embriagou, confundiu todos meus sentimentos, certezas, levou-me serena ao meu fim.
O fim que eu plantei, o fim que eu amei.
Então desperto num dia qualquer, embora todo dia seja um dia qualquer...
Procuro pelo buraco negro, porque sempre pareço procurar o que temo, e ele não existe ao meu redor.
Mas nada é o mesmo, tudo foi desconstruído e montado de uma forma estranha, ao meu ver.
Embora tudo esteja no mesmo lugar, eu desconfio... desconfio de tudo.
Então percebo o porquê de nada ter deixado de existir após a sucção do buraco negro...
É porque está tudo dentro de mim, tudo ao mesmo tempo agora.
Eu sou o fragmentado e o fragmentador.
Eu sou o temível e o temeroso.
Eu suguei tudo, eu sou o buraco.

27 de ago. de 2013

Fiel meretriz


A tristeza, uma meretriz tão bonita e perfumada, deita-se em minha cama.
Não preciso convidá-la, não preciso de canções clássicas sobre a dor, ou de um copo cheio de torpor;
As portas estão sempre abertas.
Abertas para todos sentimentos.
Alguns visitam com mais frequência, outros apenas acenam lá da rua, nem param.
Mas a tristeza é uma velha conhecida, ela foi meu primeiro amor.
Há bem quase vinte anos nos encontramos, eu, ela e a vergonha.
Da vergonha não gosto, por isso nem falarei muito dela;
A vergonha pesa desumanamente, e ao contrário da tristeza, que é fria e delicada,
A vergonha queima, impede, dilacera. 
A vergonha não é visita, é inquilina sem contrato.
Nunca vai embora, a desgraçada.
Mas a tristeza, essa sempre foi gentil.
Nunca chegou fazendo estardalhaço, falando alto, quebrando os pratos.
A tristeza é uma dama, uma dama sedutora, elegante, cortês.
Quando todos os outros sentimentos partem, ou ao menos se tornam invisíveis nesse quarto,
A tristeza permanece aqui. Fiel. 
Com o mesmo vestido vermelho e longo, com a mesma face bem maquiada.
Embora ela deite em outra camas, eu sei que jamais me abandonará.
Seu beijo é amargo, mas ao menos é um gosto a se sentir.
Seu abraço é sutil e gélido, mas ao menos é repleto de sinceridade.
Para ela, e unicamente para ela, fico completamente nu.
Pois ela aceita por completo este eu que aqui dentro vive.
Ela, por mim, paralisa todos os relógios, crenças, expectativas e desesperos.
A tristeza me amansa, a tristeza me acalma...
Eu sinto que a tristeza me ama.

23 de ago. de 2013

Eufemismo


Passando em frente ao velho museu estavam os dizeres: "Desperte o músico que há em você!". Seguido de "Inscrições..." etc. 
Tentei filosofar: O que haveria cá dentro para ser despertado?
Mas logo meus olhos se deliciaram com os três ou quatro ipês amarelos repletos de flores nascidos à frente do tal museu, então as filosofias evanesceram, mais uma vez.
Eternas reticências... 
Todos os dias, todos os pesadelos, todos os anseios. Reticentes.
Nada é concreto, prático, solucionável, claramente compreensível. 

Também existe um pássaro no meu coração que quer sair. 
Não sei se ele é azul como o de Charles, porque dentro tudo é tão confuso e escuro que não sou capaz de enxergá-lo. 
Mas ele está ali, pois em certos dias, em certas horas desses dias, eu ouço seu canto. 
Um canto tão leve que por vezes vai fazendo lágrimas suaves brotarem lentamente dos olhos.
Um canto tão pesado que segura estes mesmos olhos abertos e secos, madrugadas insones adentro.
Talvez esse pássaro tenha se aninhado em mim para dar sentido a esta vidinha medíocre e sem profundidade. Talvez ele direcione meus sentidos para os autorretratos que Deus deixou espalhados por aí. E isso é tão bonito de sentir.
Porém, talvez, esse pássaro seja um inimigo cruel, que já consciente do fato de eu não ser nada além de um jaula feia e enferrujada, adentrou assim mesmo para fazer-me sentir culpa da sua falta de liberdade.
Quem é você, pássaro?
Que quer de mim, realmente?



imagem: internet

13 de ago. de 2013

O perfume do meu reino


Se fizer silêncio, já está bom.
Se não houver barulhos nas madrugadas; se os homens, mulheres e crianças não gritarem; se os cachorros não latirem muito e os gatos não brigarem em cima dos muros, já está bom.
Porque a gente cresce e o coração vai diminuindo de tamanho, consequentemente nossas necessidades e exigências também, consequentemente nosso brilho no olhar também.
Antes, a gente exige, depois a gente quer, depois a gente espera, depois a gente não espera mais, só sente falta, no final, nem falta a gente sente. É até bom, se isso não nos tornasse pedras, porque a dor vai diminuindo com o tempo, com a claridade.
Mas preciso dizer, que num dia desses, voltando pelas ruas repletas de ipês que já começam a dar boas vindas ao inverno com sua flores rosadas, eu senti aquele perfume. 
Sim! 
Aquele perfume de que nunca falei, de que ninguém sabe, de que ninguém sente. 
Era o cheiro do Meu Reino. 
Meu Reino que já não me recordo mais como era, pois deve ter morrido junto da infância, mas era o cheiro dele, eu sei que era. 
Meu Reino repleto de flores e heróis e levezas. Meu Reino onde minhas lutas eram dignas e felizes, onde os sorrisos e as almas eram de uma profundidade que não sei expressar. 
O que posso dizer é que esse Reino é bem diferente de tudo aqui. Lá, eu mesmo sou outro. Lá sou puro, intenso, livre, feliz. Lá sou príncipe. Mas não como os príncipes daqui, que reinam sobre os outros, lá sou príncipe sobre mim mesmo. Minhas atitudes são nobres, meus sonhos são nobres, meus desejos são nobres.
Mas o perfume não durou tanto para que eu me recorde de mais coisas, passou rápido como sempre. 
Nem me recordo qual foi a vez antes desta que o senti. Sei que foi há tanto... Por isso temo e sofro em dizer: cada vez mais raro será, cada vez mais ralo, escasso.
Eu não queria isso.
Eu não queria esse mundo e as necessidades que ele me obriga a ter, as genuinamente minhas são tão mais significativas, tão mais profundas.
E meus heróis? Não há um cuja face permaneça intacta em minha mente. Não há um cuja espada ainda reflita luz nos meus olhos. 
Sinto saudades.
Sinto saudades...


De "Nuvens de Janeiro"

5 de ago. de 2013

Bons sonhos


Meus demônios disseram-me que quando não se luta por nada se é vencido por tudo.
Odeio quando meus demônios sabem mais de mim do que eu mesmo.

Já não são suficientes doces sonhos, ou as flores perecíveis dos ipês ao sobreviverem ao inverno.
Já não são suficientes as folhas arfando e crepitando abaixo dos meus passos lentos enquanto observo uma cidade morna, morta e pegajosa pelas janelas cansadas da alma.

"Escolha um desses caminhos:" Dizem-me os demônios.
E nem um deles me serve, nenhum deles faz sentido para mim.
"Todos escolhem um desses caminhos." Insistem os demônios.
E eu apenas observo, caminhando lentamente de costas, sentindo todas as ultrapassagens, sentindo todos os adeuses.
Deram-nos todo o poder do mundo. Asas e controle sobre os elementos...
Mas não deixaram a chave da jaula. A chave proibida.

Eu não sinto medo.
Eu continuarei retirando uma a uma as pragas das flores, mesmo das que morrem rápido, mesmo das que jamais serão perfumadas.
Não escolherei mais nenhum culpado por meus afogamentos.
Ninguém criou meu oceano negro e infinito além de mim, ninguém me salvará das águas dele além de mim.

Quem sou eu para discordar de um sistema tão impecavelmente falho e aceito?
Quem sou eu para dizer que todos morrem por guerras eternas e sem valor?
Quem sou eu para falar da estupidez humana?
Todos também são vazios.
Todos também querem o amor verdadeiro.
Todos estão perdidos.
Todos sabem de todas as coisas.
Todos estão bem assim.

Mas já é tarde. 
Volte a dormir agora.
Foi só mais um pesadelo, com a diferença de não estar dormindo desta vez.
Bons sonhos.