30 de mar. de 2016

Eu também estou coberto de espinhos


Eu vejo as luzes...
eu falo sobre as luzes.
eu ouço a voz dos anjos
e o coração ascende enquanto imagino suas faces.

Todos os dias, eu olho para um canto esquecido
onde uma roseira exibe pequenas rosas vermelhas.
e sorrio, como se estivesse nos tempos de outrora
e a magia residisse em tudo de belo.

Nas noites, procuro estrelas,
a lua por entre concretos,
e sua luz iluminando as jovens flores
parecidas com orquídeas.

Ao fechar os olhos, lágrimas caem,
e eu penso sentir a presença de Algo Maior,
belo e puro, que não me mostra sinais claros,
mas sei que permanece ali.

E tudo isso, às vezes,
me faz pensar que minha alma tem leveza,
que paira longe da escuridão e do medo,
mas não é verdade.

Não é o mundo que me fere,
que me faz uma criatura fria,
sou eu;
uma criança egoísta, pequena, mesquinha.

Deus teria misericórdia desses ombros covardes?
Talvez seja esse o medo da solidão...
Estar apenas ao meu lado, e nada mais.
Lutando pela salvação, não mais pelo amor.

Não, o mundo não quer o que quero oferecer.
O mundo não precisa.
O mundo quer minha alma.
E minha alma está cheia de espinhos.

29 de mar. de 2016

Toda delicada esperança


Não quero perder a rosa, deixá-la;
Mas ela passa, displicente, sucumbe.
Ao contrário do que é dito, é humilde,
Não ata-se à sua beleza prodigiosa
Ou ao perfume causador de quase-sonhos.

Quero tanto não perder o que não é meu...
Como a felicidade, branca de luar,
Sorrindo-me nas noites de sábado estrelado,
Oferecendo-me trégua e peito quente.

Tudo é partido... Deus, tudo!
Sendo reluzente, belo, admirado, parte!
Apenas os lábios amargos e frios permanecem eternos;
Apenas o que nunca será amado.
Nunca.

Aquilo... cujos urros ouço por detrás dos concretos sujos,
Pelas portas e fechaduras.
E eu lembro do tempo de menino:
Antes, os fantasmas eram rápidos e silenciosos...

Agora eles rastejam, maculam a atmosfera,
Alimentam-se de toda delicada esperança.
Enquanto sinto que os anjos silenciam
E assistem, quietos.
Se assistem...

Outrora: Aleluias


Nas noites após a chuva e durante a lua cheia, as aleluias tomavam contas do ar, como pequenas fadas perdidas em uma terra desconhecida. Giravam em torno das luzes, feito nuvens douradas, leves como o ar.
Talvez viessem do outro mundo para também sentir o sabor da noite.
Eu fechava os olhos e ouvia a aquele bater de centenas de asinhas, sentia o perfume da noite de ar tão puro, tão limpo, e o silêncio se fazia em uma canção que só eu podia entender.
Hoje, andando pelas ruas vazias, fechando os olhos e deixando os passos serem guiados apenas pelo coração, eu tenho a certeza que aqueles eram tempos não apenas mágicos, mas santos. Tempos em que tudo cumpria um papel sublime de fazer da Terra um pouco do paraíso.

E a Terra era. Realmente era.

Outrora: santuário

Atrás da velha igrejinha fiz meu santuário. Ali ninguém ia, era meu pedaço particular de mundo. Havia uma jovem, mas já grande mangueira, pés de café quase sempre florindo, ao lado de um pequeno pedaço de chão cimentado. Ali eu guardava minhas relíquias tão sagradas, pedras com poderes variados, varinhas mágicas, cajados de defesa, objetos de proteção...
Na parede, rabiscava meu nome com letras tortas, desenhava símbolos inventados, pendurava poções.
No meu abrigo, nada de ruim podia entrar, era muito bem protegido pelas forças
da  natureza, círculos mágicos e guardiões invisíveis.
A jovem mangueira era o alto da torre do meu santuário. Dali podia ver todo o reino, as terras felizes e as terras proibidas.
Talvez eu já soubesse de algumas verdades da vida... mas eram anos encantados, nada era mais forte do que aquilo que eu conseguia imaginar ser real.

Ainda não é.

Outrora: Duke


Na estradinha passavam matilhas de cães. Sabe-se lá de onde vinham. Mas eram muitos, sempre juntinhos, como uma caravana muito bem decidida a chegar a lugar nenhum.
Mas um dia um cachorro solitário passou. Destacava-se pela beleza. Era grande, preto, de longos pelos lisos. Tinha algo de nobre. O pai, se não me engano, laçou o cachorro com uma corda e trouxe pra perto. Fomos domesticando o bicho. Deram o nome de Duke.
Duke era minha alegria. Nas minhas lutas imaginárias, era o poderoso guardião alado, que sobrevoava comigo pântanos monstruosos e terras habitadas por monstros horríveis.
Para mim, ele era bem mais que o manso e preguiçoso cachorrão, que todas as noites subia por uma escada até o telhado onde dormia sem ser importunado. Ele era meu primeiro herói. O primeiro de tantos que precisei em todos os anos que viriam.

Um dia Duke partiu, partiu de uma forma triste que não vale a pena contar. Para mim, ele tinha só voltado para junto das velhas caravanas, indo ao encontro de outros meninos que precisavam de um amigo, de um herói.

Outora: medo do escuro


Não farei de santos os tempos em que meu olhar era mais doce. Mas eu lembro que podia voar.
Nos sonhos, o corpo acompanhava a cabeça que já vivia nas nuvens. Mas adiantava voar se não se podia ir para muito longe? Todo abrigo é também uma prisão. A infância era uma bolha mágica, e mesmo aquilo de mais assustador e perigoso não penetrava, a mente era blindada e o coração era inocente como flores. Por quanto tempo escolhi o abrigo seguro e não a liberdade? Hoje não sei se algum dia houve abrigo. Se a prisão era também abrigo. Se só havia prisão...
Mas choro às vezes com o perfume de noites semelhantes àquelas tão distantes. A velha criança quer renascer, brincar, correr, sonhar. Mas não há como, faz escuro lá fora e os sonhos adormecem todos.
Então é isso ser gente grande,

Ter medo do escuro?

Outrora: milhões de tempos atrás


A mais bela de todas as coisas eram os anos serem lentos, o tempo não se preocupar em passar. Tão pouco a desejar e tão pouco a perder.
Bastava um luar, um dia de sol, casinhas de papelão e gravetos construídas no chão, para a felicidade sorrir como bondosa amiga.
Eram tempos de se pertencer mais ao céu que ao chão. De conhecer tanto estrelas, quanto flores.

Olhando agora, daqui de longe, separado por anos e anos, uns mais curtos, outros tão, tão longos, aqueles parecem tempos perdidos milhões de tempos atrás.

Outrora: Doçuras e amarguras


Sonho era uma coisa assim, não ia muito longe não. Terminava ali adiante, depois do canavial com as flores douradas pelo sol poente. O mundo era tão menor, cabia nas vistas, no coração.
Aquele era um tempo de doçura e amargura. Lembro do pai trabalhando no tacho borbulhando, cozendo a garapa pra fazer rapadura e vender na cidade, oficio antigo do vô. Em alguns dias ele assoviava e chamava a gente pra comer o melado que sobrava, e a vida toda ganhava aquele sabor tão doce. Nesses dias ele não parecia frio e duro como aço. Pena serem raros...
Lembro da vó Landa e seu sorvete de abóbora. Ninguém no mundo fazia melhor que ela, tenho certeza. Tinha muito amor misturado ali, um amor de que ainda me lembro do gosto.
E a mãe... lembro dela naquele tempo sempre sorrindo, mesmo sabendo hoje que tudo era tão duro pra ela. Acordar cedo, trabalhar tão longe, indo de carroça na geada pela estrada esburacada. A mãe não fazia muitos doces, mas ela tinha os gestos mais doces de todos. Era como uma guardiã, uma águia protegendo suas pequenas crias. E eu que esqueço de quase tudo, lembro tão bem de cada pedacinho daquele amor.
Bem sei também das amarguras daquele tempo... mas de que servem agora? Que fiquem no fundo da mente, inertes, como toda amargura deve ficar. Não sei, mas não quero diante dos olhos de novo as cenas que me causaram repulsa.
Quero lembrar do cheiro do cafezinho à noite, forrando o chão com suas florezinhas brancas. Da mente tão leve que quase levantava os pés do chão também. Lembrar que à revelia de tudo, era feliz, ainda que sem saber.



Outrora: igrejinha de Santa Luzia


Chegamos de longe, eu ainda não contei;
era uma ida e vinda sem fim entre Londrina e Penápolis. Nasci lá, na terra vermelha, cruzando o grande rio.
 O pai veio pra cuida do sítio da vó, de umas vaquinhas, uma terra seca de dar dó, onde nada crescia. Para eles, esperanças frustradas. Para mim, o paraíso.
Criança naqueles tempos era uma coisa um tanto diferente. Sofria diferente, sentia diferente. Se lá tinha as mangueiras, a amoreira, os pés de siriguela e macaúba, era o céu. Querer o que mais? A gente, eu e as manas, passávamos os dias mais no topo das árvores que de pés no chão.
Lá longe, contava a irmã, naquela floresta, moram Os Trapalhões. E eu queria muito ir lá conhecer o Zacarias, porque ele era um sujeito simples e risonho, mas a mãe não deixava.
Quase embaixo da maior mangueira, aquela da qual um dia a irmã caiu, mas nem machucou muito, ficava a Igrejinha de Santa Luzia. Foi construída por alguém do passado velho, vô ou bisavô pra pagar promessa. Ela me dava medo. Tinha um monte de imagem de santo quebrada e uma de Santa Luzia com um prato nas mãos. Um dia vi que ali estavam dois olhinhos.
Coisa mais medonha, eu pensei. Quem que leva olhos assim, num prato. Lugar de olho é na cara. Com o passar do tempo fingi que entendi o significado. Essa coisa “significado” faz o absurdo ter sentido. Então está bom.
A igrejinha era um lugar meio proibido, de respeito permanente. Não podia entrar sempre nem brincar ali, só rezar, mesmo sem saber rezar. Então, quanto a porta estava aberta, eu sentava no banco e ficava quieto vendo aquele monte de coisa estranha. Uma imagem de São João com o Menino Jesus nos braços, toda desbotada e manchada de chuva. Aquele São João parecia sempre bravo com alguma coisa.
Será que os santos são tão sérios assim, ou são os pintores que não sabem como pintar sorrisos. Porque eu achava, e ainda acho, que santo sorri. É santo, oras. Deve de ser feliz.

Tristes somos nós, meio que esquecidos aqui, nesse mundinho cada vez mais estranho...

Outrora: capinha de veludo




O quarto da mãe e do pai parecia uma caverna escura e bem arrumada, de luz amarelada e muitas toalhinhas nos móveis.
No alto da cômoda tinha um perfume embalado numa capinha de veludo, de tampa preta. Pra mim, aquele era o cheiro dos sonhos.
Se sonho fosse uma coisa de ter perfume, como uma manga no pé, uma ameixa do mato ou uma amora vermelha, ele teria aquele cheiro.
Não era só um cheiro bom, era um cheiro mágico. Cheiro de uma vida que não pesava, não doía, não colocava o peso do mundo nos ombros da gente.
Antes de ir pra escola, eu abria escondido e passava umas gotas no pescoço. Escondido, modo de falar. Perfume todo mundo sente, não é? Então pegava a estradinha branca, passava pela porteira velha e ia esperar o ônibus da escola no ponto da Estrada do Mineiro. Ali perto, florezinhas amarelas de seiva doce cresciam nas cercas, eu e as irmãs chupávamos o líquido docinho de dentro, como beija-flores.
Volta e meia eu sinto o cheiro do antigo perfume, não sei se de verdade ou de saudade, mas sinto. E volto pra aqueles dias onde tudo era simples de um tanto...
Em tudo havia pobreza e carência, mas não na imaginação.
Com aquele cheiro eu era o menino mais bonito da escola, o mais feliz.

Sabe, tem vezes que quero ser aquele menino de novo.

Outrora: coisa ruim


            Coisa bonita é que deve ter nome: borboleta, passarinho, flor, lagoa, suspiro, sorriso, abraço, abrigo.
Coisa ruim não!
De coisa ruim a gente lembra como lembra de espinho no pé, que faz a gente mancar; aquele incômodo!
A coisa ruim que me escureceu a vida apareceu eu tinha sete anos. Menino de sítio, frágil e bobo, mas de mesmo coração, mais de vinte anos depois.
Aquela era uma coisa ruim bem disfarçada. Parecia palhaço de circo que faz graça, mas no fundo mete medo danado na gente, sabe? Era uma coisa tão bem fingida que nem eu via que era uma coisa ruim, dessas que roubam a pureza da gente, aquela relíquia mais bonita e mais sagrada.
Mas antes da coisa roubar toda claridade da alma, eu escondi um bocadinho de claridade. Fiz bem, fiz mal? Não sei. Mas algo bom passou camuflado e bem vivo, anos e anos... Escondi esse tesouro dentro de um baú mágico, que leva todo tipo de golpe, o coitado, mas não se quebra ou se parte. O Coração guardou um sonho, bonito e calmo como a noite de lua cheia na roça.
E essa coisa deixou seu estrago,  mesmo com o sonho firme dentro do coração, ela traz certos pesadelos em noites muito silenciosas. Então eu preciso nos perdoar novamente.
Não sei quão fundo ela atingiu, que quantidade exata de coisa ela contaminou.
Os anos passam, mas cicatriz, uma vez feita, é pra sempre. Eu até tento explicar às vezes, pra mim, pros outros, tudo isso que se houve, continuo pedindo um socorro mudo. Mas ninguém entende, não. Ninguém sentiu o mesmo.

Mas eu sei de uma coisa: coisas ruins como essa às vezes possuem nosso corpo, mas nunca nossa alma.

Outrora: A Floresta Proibida das Lebres Cinzentas


Antes do sítio do Velho Tonho, tinha a Floresta Proibida das Lebres Cinzentas. Eu mesmo dei o nome, mesmo que ninguém nunca saiba dele. Contava minha mãe que lá existiam canibais, formigas gigantes, cobras com dentes de morder e hienas risonhas e famintas. Eu era meio esperto, só acreditava nas formigas gigantes e nas cobras, que não deviam ter dentes coisa nenhuma.
Mas nunca ousávamos entrar. Ficávamos só nos arredores, que tinha imensas árvores de caule branco de onde pendiam cipós grossos em que balançávamos a tarde toda.
Raras vezes ousávamos dar uns passos adentro, com cuidado, ouvindo os pássaros e vendo as lebres correrem para longe, como loucas. Tínhamos medo do que as assustava, sem saber que o que as assustava éramos nós.
Pra mim, era também um lugar sagrado, ainda intocado, onde fadas e magos podiam viver em paz, fazendo as flores crescerem e desabrochar. Que pena nunca ter encontrado com algum deles. Eu teria ficado fascinado!
Mas eu sei que estavam lá, criaturinhas do bem, espreitando e protegendo aquele santuário para que ali não entrassem maus espíritos.

Agora resta na memória apenas o perfume daquele lugar mágico, aquele lugar tão meu. Que talvez não exista mais no mundo real, porque o homem ainda pensa que precisa destruir o Belo para ficar rico; ainda pensa que precisa ficar rico. Mas em minha mente ele reside, intacto, cheio de lebres cinzentas velozes e cipós de balançar.

Outrora: Vultos


Acho que nos velhos tempos, todo pedaço de mato com gente morando era impregnado coisas de outro mundo.
A mãe contava histórias que fazia a noite ser um tormento; sopros na nuca, vozes no banheiro, sons no telhado; nós, crianças assustadas, dormíamos com muito calor, corpo todo coberto, só os olhinhos de fora. Dependendo do medo, era melhor dormir com a irmã, deitados ao contrário, um protegia o pé do outro das assombrações.
Comigo, teve a vez do vulto branco e do vulto preto.
Um dia um poste da estrada caiu, ficamos no escuro. Noite, aquele breu e sítio, era coisa de botar calafrio na espinha de criança.
A gente estava lá, olhando o horizonte, o céu claro da cidade não muito distante, e eu vi o vulto branco passando pelas costas. Tremi e não falei um ‘a’.
Quando entramos, as velas estavam apagadas e a mente trabalhou rápido: “Foi um anjo. Uma vela dessas ia cair e queimar a casa toda. Ele veio apagar.” Então o medo passou.
Mas teve o vulto todo de preto. Esse passou de dia pela janela da sala. Eu sentado no sofá vendo televisão; lembro-me daquela forma preta, como que desenhada, andando rápido. No fundo acho que fiquei foi paralisado ali mesmo, mas uma outra versão da mesma história é que saí correndo atrás da suposta assombração.
Corria pelo canavial atrás da coisa que corria mais rápido do que eu. Por ser dia, criança é mais valente.
A coisa entrou num casebre que algum dia deve ter servido pra alguma coisa. Portas e janelas se fecharam com violência e começou uma ventania.
Dei no pé. Coragem também basta, tem hora.
Talvez ‘ele’ estive com mais medo de mim que eu ‘dele’, afinal, corria.
Ou é só outra trolha da memória. Hoje, tudo pode ser ou não verdade sobre aqueles tempos.

Mas por que então lembro tão bem daquela forma?...

28 de mar. de 2016

Outrora: Estradinha


Não era um mero caminho, não.
Tinha algo de divino ali... Porque quando o sol se punha, sua luz suave brilhava na alvura dos grãos de areia e eu pensava que aquilo era um pouco de Deus se mostrando pra mim.
E eu estava certo.
Corríamos e dançávamos ali, como espíritos livres, cheios de uma pureza que transbordava.
Ela formava um “L”, e no canto desse L tinha uma árvore já na velhice, com cipós caídos para bater na cabeça dos menos atentos. Para nós, eu minha irmã, aquilo tudo era um parque de diversões, coisa que só veríamos tantos anos depois, e que não seriam tão bonitos e tão divertidos.
Nós nos balançávamos, caíamos, chorávamos e ríamos.
O mundo era pequeno e doce, e era só nosso.
A natureza era uma mãe mais velha, uma avó carinhosa, bela, cheirosa e meio atrapalhada.
Quando chovia, era um milagre, sabe?
Se a mãe deixasse brincar na chuva, a alegria arrebentava o peito!
A areia branca ficava marrom e nós corríamos como relâmpagos pelas poças e enxurradas.
Pulando, rindo.
Ninguém havia inventado ainda o tempo. Só o dia e a noite, a chuva e o sol, as árvores e as tímidas flores amarelas brotando na relva.

A felicidade existe... ou existiu. Porque dançávamos com ela na estrada branca, nos dias de chuva, nos dias de sol, nos dias que nunca tiveram fim.

27 de mar. de 2016

Outrora: flor de madeira


Na entrada do sítio, tinha uma grande árvore.
Ela era como uma senhora bondosa que acenava para as visitas e dava os restos de comida para os cachorros.
De longe, quando a cana ainda era só broto, ela era a primeira coisa que se via.
Imponente, de pele enrugada, folhas de um verde escuro e duro.
Suas flores, antes de abrirem, lembravam mãos em prece, um tubinho marrom que parecia repleto do Sagrado.
E quando se abria, era todo encanto. Suas sementes voavam pelos pastos solitários e nós colhíamos do chão aquelas flores tão rústicas, marrons, sem perfume, mas tão delicadas e cheias de pura beleza.
Eu fazia um pequeno buque selvagem cheio de amor e levava para a mãe, sempre tão exausta do peso da vida que eu ainda não podia ver, protegido pela bênção da meninice.
A mãe sorria, arrumava um vasinho improvisado e colocava na estante.

No fundo ela sentia, não era flor que eu dava, era meu coração bem desabrochado.

Outrora: tempos de menino

"Outrora: tempos de menino" será uma série de 13 pequenos contros sobre a infância publicados aqui no Aventuras Internas no decorrer de 13 dias. Os "contos" tratam de épocas remotas da infância, suas belezas e maginas, num tempo tão diferente...


20 de mar. de 2016

Abandono


Abandonei-me no peito farto, quente;
Entre silêncios, aromas, toques.
Abandonei o medo, sempre companheiro;
A razão, sempre severa.

Abandonei o sonho, e sonhei com a realidade,
Com uma força tamanha e minha, que ainda adormece.
Nenhuma ilusão ao socorro...
Não é necessário ser socorrido, não agora.

Abandonei o desejo absurdo da perfeição,
E o pouco que ofereci, talvez fosse tudo,
Por ser finalmente oferecido,
De plena vontade.

Agora sei que não posso construir o caminho.
Mas mostre-me o caminho, e eu o seguirei,
Pois assim o coração diz ser o certo.
Abandonei aquilo que não era eu.

18 de mar. de 2016

M eu menino


Dentro ainda sobrevive aquele velho menino.
Aquele menino, de cabelos caídos sobre os olhos castanhos como a terra.
Olhos de menino... sempre tão vivos e famintos das delicadas e imperceptíveis belezas:
Uma pedra mais colorida que as demais, tão cinzentas;
Um passarinho mais bonito e colorido que a infinidade de pardais;
O sabor morno da pitanga vermelha colhida do pé;
A luz dourada do poente nas flores do canavial que parecia não ter fim;
O aroma encantado da noite, que tudo cobria com um lençol negro de medos e mistérios;
A inocência que permita possuir asas nos sonhos, e ir para longe, tão longe, tão alto.

Hoje, uma ou outra coisa ainda reluz, eu colho com carinho e entrego ao meu menino.
Seu olhar brilha junto das cores do pequeno pedaço de vidro parecido com cristal, da melodia suave, do córrego cristalino.
E fico feliz com essa doce capacidade dele de ainda achar encanto no ordinário da vida.

Agora a noite não assusta, tanto.
O levo para contemplar o céu do jardim cheio de vultos de plantas adormecidas.
Ele se maravilha com o espetáculo celeste.
Eu, adulto, arisco: aquele deve ser Marte. Aquele, Vênus. Veja o Cruzeiro apontando para o Sul. Que retinhas as Três Marias! São o Cinturão de Órion.
Mas nem eu nem ele sabemos ao certo de nada, só observamos em contemplação e louvor.

Ele se emociona. A beleza o atinge como uma chuva de final de verão.
Deixo que chore. Choro junto, e ele sorri.
Em alguns tempos, penso que partiu. Fica tão quieto.
Ou que caiu em sono profundo, para tão longinquamente despertar.
Mas logo uma rosa desabrocha, ou um sorriso tímido e tão bonito se mostra, e sinto sua presença feliz de volta.

Com ele não falo das extensões amargas da insossa e ignóbil realidade dos Homens.
Tudo é tão feio e escuro aqui fora.
Ele não precisa saber o que me assusta.
Só quero que fique assim, inocente e puro, como um sentimento puro;
Achando que pode alcançar o céu do topo das árvores.
Achando que pode tocar corações com seus poderes mágicos.

17 de mar. de 2016

Pela noite, pela manhã

Você pode voltar a me assombrar,
Nos sonhos tão meus, em noites tão minhas,
Com demônios do passado e do futuro.
Pode me por em posição fetal a chorar,
Como naqueles dias
Em que nenhuma luz podia vir do céu,
Ou de qualquer outra coisa.
Pode olhar em meus olhos com a frieza do aço
Enquanto coloca o maior medo nos meus ombros,
E me dar visões funestas de dias dos quais espero a felicidade.

Mas a manhã virá, e eu serei resgatado por uma doce canção.
Ninguém virá ao meu socorro, mas ela libertará meu espírito.
Você é tão forte, mas tão fraco se visto de perto.
Eu sei que nunca mais serei o mesmo,
Que são vagos e distantes o tempo de menino,
Mas a alma ainda se move e sobrevoa campos amarelos,
Cheios de tanta, tanta vida.
E por um instante, o pavor se desfaz,
E acredito que não serei outra vez para o amor uma mera distração.
Enfim, faz sol.

16 de mar. de 2016

Mesma velha canção


Eu vejo através dos olhos impenetráveis,
Sinto através dos sentimentos blindados;
Estou mais vivo, mais à flor da pele,
Do que a tolice dos meus atos me faz parecer estar.

Eu estou lutando...
Todos não estão?
Um final feliz;
Sem felicidade, sem final.

Mas as mesmas velhas canções voltam
Quando eu sei que tudo está prestes a partir.
Estendem minha visão sobre as brumas de um futuro cinzento.
E eu finjo não ver, eu finjo que não é verdade o que é verdade.

Porque a esperança é faminta e a única coisa ainda viva,
Então a alimento com ilusões que são pedaços de mim.
Pedaços pequenos demais para que alguém note sua falta,
Grandes o suficiente para que eu sinta a dor dos vãos no espírito.

14 de mar. de 2016

Há ainda dentro


Eu lembro de uma estrada...
De luzes velozes, um aroma, uma proteção.
Eu lembro do silêncio e ao mesmo tempo de uma canção:
Quando a quietude é pura, ela canta.

Todo esse tempo, essas lágrimas;
O que eu via era minha mão comprimindo o que bate no peito,
Até vazar pelos dedos como areia morta,
Como memória inútil.

É certo permitir que renasça o coração?
Que faria com essa esperança prestes a dar à luz?
Há ainda dentro desta armadura frágil algo de divino,
Mas nem meus olhos se atrevem a ver.

O que pode a Indiferença além de deixar cicatrizes profundas?
Falhou em seu intento de secar meus olhos às belezas.
Que cada um saiba perdoar os próprios crimes,
Ainda tento perdoar os meus.

13 de mar. de 2016

Livros em promoção

Até dia 16/03 meus livros estarão em promoção no Clube de Autores.
Para quem deseja adquirir algum, é uma boa chance.

https://www.clubedeautores.com.br/books/search?utf8=%E2%9C%93&where=books&what=Marcos+Serafim&sort=&topic_id=


12 de mar. de 2016

Abra tuas mãos


Ainda que o coração não seja, assim,
Tão imenso,
Abra tuas duas mãos ao recebê-lo.
Se recebê-lo...

Eu lembro dos dias de um agosto inclemente,
E de cada uma das cicatrizes,
Como filhas que eu não esperava por à luz.
O caminho até aqui foi mais longo do que parece.

Uma legião de heróis vieram ao meu socorro
Para que o peito pudesse ser completo de novo.
E agora, com o que possui de melhor e mais belo,
Se doa sem medo e sem ferimentos.

Abra tuas mãos, com felicidade, se há felicidade,
E eu saberei estar no caminho certo.
Não quero vislumbrar flores perfeitas,
Quero dedos juntos aos meus cultivando o Jardim.

9 de mar. de 2016

Virá o Outono


Ainda posso sentir o veneno do espinho
Da última Primavera percorrendo meus dedos.
Sua dor já não me causa desespero,
Mas nojo.

A dor irá cessar, como flores condenadas à fragilidade.
Condenadas à falta de perfume e admiração.
A dor irá cessar,
Mas o Amor na alma um vez nascido, não.

Na luz do domingo quente queimarei seus ferrões,
E talvez chore lágrimas puras para limpar as sujas antecessoras.
Virá o Outono, sem infrutíferas ilusões coloridas,
E meu peito será renovado pela dourada luz do poente.

Há enfim o meu reflexo no espelho,
Belo ou vergonhoso: eu.
Há enfim viva outra vez a máquina do peito,
Agora, em meu poder.

6 de mar. de 2016

Nas palavras


Guardo-te nas palavras,
Tenho medo da memória.
Como os arranhões feitos na pele
Pela primavera derrubada pela chuva,
A memória talvez desapareça.
Mas nas palavras, nas frágeis palavras,
Que pouco podem com a brutalidade do mundo,
O tempo pode ser paralisado, eterno.

Fez-me livre, saiba.
Pois foi um momento sem medo.
E eu bebi fartamente do instante
Sem passado e sem futuro;
Sem vozes frias, mentiras camufladas.
E quando fechei os olhos,
Esquecendo de tudo, e acima de tudo,
De mim, alcei voo magnífico.

Ri das minhas lágrimas;
Também eu rio delas.
Porque o que o coração viu foi a morte,
Mas hoje quer ver as estrelas e louvar quem as criou tão belas.
Porque o coração acreditou não merecer bater outra vez,
Mas hoje quer acreditar poder até sorrir...
Sorrir iluminadamente, como você.
Ser belamente, como você.

2 de mar. de 2016

Crepúsculo dos sonhos


Ah, ilusão, 
Teu gosto já não me seduz.
Eu vi o que aqui é a vida
E me dá nojo tua face bonita.

Ah, ilusão, 
Teu espetáculo não me encanta.
A verdade ri de ti como ri de mim, 
Para ela somos os mesmos imbecis.

Sei que não solto da tua mão, 
Não ainda.
Mas eu vejo o crepúsculo dos sonhos, 
Vejo a noite infinita que se aproxima.

Ria das minhas lágrimas.
Ria das minhas pequenas lutas.
Ria da minha esperança...
Em não muito, nada terá que te faça rir.

1 de mar. de 2016

Apenas ele


A imaculada beleza do céu faz os olhos jorrarem manso pranto.
Todas aquelas pequenas luzes no negrume infinito
Lembram as pequenas claridades insignificantes do meu peito,
Aquelas, tão bonitas.

Nuvens vermelhas adornam o cenário do espetáculo.
Minha alma sente uma dor profunda, lindíssima, única:
Saudade...
Saudade da realidade que não esta, do mundo que não este.

Nunca pude acreditar no que vi ou toquei,
Mas apenas no que senti.
Não há posto para mim na luta dos homens,
A vitória de que necessita o espírito paira longe.

Mas há o elo entre a convincente ilusão e a Realidade:
O Amor.
Apenas ele... Um sopro de Divindade.
Apenas ele... Algo em que acreditar.

Que onda é essa?


Somos apenas o que somos?
Sem todas as cordas, correntes, máscaras, etiquetas,
Rótulos, rotinas, ordens, bons modos...
Eu e você, quem realmente seríamos?

Afogando todos os dias pequenas claridades.
Segurando todos os dias os pés para que não dancem a canção.
Poupando o coração do sofrimento e do viver.
Caminhando no caminho conhecido para lugar nenhum.

Somos tudo o que somos?
Se eu degustasse da sua alma agora, qual seria o sabor dela?
Se você visse minha alma nua, como meus olhos,
Você a amaria ou odiaria um pouco mais?

Mas vamos com calma. Postura. Equilíbrio.
Por favor.
Que onda é essa de querer cortar os fios que sustentam a marionete?
Que onda é essa de querer se sentir vivo?