29 de mar. de 2016

Outrora: Vultos


Acho que nos velhos tempos, todo pedaço de mato com gente morando era impregnado coisas de outro mundo.
A mãe contava histórias que fazia a noite ser um tormento; sopros na nuca, vozes no banheiro, sons no telhado; nós, crianças assustadas, dormíamos com muito calor, corpo todo coberto, só os olhinhos de fora. Dependendo do medo, era melhor dormir com a irmã, deitados ao contrário, um protegia o pé do outro das assombrações.
Comigo, teve a vez do vulto branco e do vulto preto.
Um dia um poste da estrada caiu, ficamos no escuro. Noite, aquele breu e sítio, era coisa de botar calafrio na espinha de criança.
A gente estava lá, olhando o horizonte, o céu claro da cidade não muito distante, e eu vi o vulto branco passando pelas costas. Tremi e não falei um ‘a’.
Quando entramos, as velas estavam apagadas e a mente trabalhou rápido: “Foi um anjo. Uma vela dessas ia cair e queimar a casa toda. Ele veio apagar.” Então o medo passou.
Mas teve o vulto todo de preto. Esse passou de dia pela janela da sala. Eu sentado no sofá vendo televisão; lembro-me daquela forma preta, como que desenhada, andando rápido. No fundo acho que fiquei foi paralisado ali mesmo, mas uma outra versão da mesma história é que saí correndo atrás da suposta assombração.
Corria pelo canavial atrás da coisa que corria mais rápido do que eu. Por ser dia, criança é mais valente.
A coisa entrou num casebre que algum dia deve ter servido pra alguma coisa. Portas e janelas se fecharam com violência e começou uma ventania.
Dei no pé. Coragem também basta, tem hora.
Talvez ‘ele’ estive com mais medo de mim que eu ‘dele’, afinal, corria.
Ou é só outra trolha da memória. Hoje, tudo pode ser ou não verdade sobre aqueles tempos.

Mas por que então lembro tão bem daquela forma?...