30 de abr. de 2019

Ainda vive



Ainda estava tudo em um santo repouso no fundo de uma alma envolta em penumbras. 
Mesmo o que havia morrido, em partes, ainda vivia. 
Eu sentia enquanto desconhecidas canções tentavam resgatar algum resquício do meu amor pela esperança. 
Era uma tarde de domingo qualquer. Sem memórias, sem expectativas, apenas com o sol deitando suas luzes pelas frestas dos muros e dourando algumas flores simples do jardim. 
Ainda assim era tanto, tão raro, tão precioso. Era vivo.
E os olhos quase jorravam, como naqueles dias espetaculares que eu tirava para perdoar a mim mesmo, para enxergar a minha própria claridade. 
Me escondi das palavras porque tudo o que procurou fazer morada em meu coração foi a aridez bruta desses tempos insanos. Como poderia ser diferente?
Mas há de haver uma trégua, um momento onde o olhar pode se dirigir para o céu em que a primavera lança suas primeiras flores. 
Sejamos nós, talvez, pequenos oásis nesse imenso deserto de corações letárgicos, quase mortos. Sejamos nós a brisa, o perfume sutil. 
Sejamos nós os que, de alguma forma, ainda acreditam.

21 de abr. de 2019

Ser


Na maior parte do tempo, mesmo com todo o ranger enlouquecedor das engrenagens da vida, o que estava à tona era uma silenciosa espécie de não-ser. Uma incógnita, uma ansiedade, uma espera conscientemente inútil pontilhada por cacos nocivos de uma saudade morta-viva, indecomposta.
O mundo se tornara vulgarmente árido e óbvio. E contrário disso, a vida em exuberância, claridade e mistério, abria uma janela memorial para um passado que jamais deve ser tocado ou sentido, ainda que pulse.
Eu queria que restasse nos cantos da alma aquelas pequenas preciosidades bobas que eu oferecia tão carinhosamente... Quando, mesmo com toda a densidade e escuridão já tão profundamente conhecidas, vividas, sentidas, havia um riacho de docilidade que jorrava pelo sertão amargo dos dias.
Talvez se eu conseguisse me ver com os olhos que você fingia me ver antes de para sempre partir, eu entenderia algo mais perene sobre o verdadeiro amor.
Eu não gostaria de viver satisfeito apenas por ter tempo suficiente para tomar fôlego para o próximo susto. Acredito que você também não.
Eu estou com o papel em branco em mão, e mesmo com as forças que seguram e endurecem meus dedos, talvez eu ainda possa reescrever um final ou dois, um caminho que traga novamente aquele fogo ao olhar. Quais palavras ainda não foram por mim ditas, que suplicas não foram lançadas ao universo, o que ainda não foi exposto do coração, mesmo para seres estranhos, incapazes, frios? Parece mais difícil agora descobrir.
Eu sempre irei voltar para esse vórtice de gratidão, confusão, medo e ódio por ter sido um dia abençoado com a maldição do seu amor...
Mas mesmo nessa penumbra dos dias, mesmo nessa ausência aparente de claridades e belezas e sonhos recém-nascidos, o que existira do verdadeiro Eu ainda existe na mesma proporção, ainda que encarnado em uma forma completamente diferente.