29 de dez. de 2022

Tudo começou com uma canção 

Também com um "sim"

Mas principalmente com uma canção

Pois que antes só havia o silêncio 

E o silêncio feria todas as obras da Criação 

Usurpava-lhes a vida

E o silêncio mantinha todas as sementes adormecidas na terra

Todas as esperanças no fundo de uma caixa de horrores

Então o som se fez

A voz 

O riso

O nome

E as lágrimas nasceram também 

E desceram até os confins da alma 

E houve um sentimento profundo por tudo o que não se pode ser 

O que ainda será 

Então lírios da paz foram plantados junto a pequenas rosas 

Os mesmos lírios plantados na despedida do grande último amor

As mesmas rosas plantadas na despedida da última pequena ilusão 

E na manhã quase sem luz 

Algo de tão brilhante 

De pele dourada 

Foi avistado na loja de flores 

Carregando orquídeas 

Carregando toda beleza do mundo 

E coração pode de novo por um instante ouvir 

E ainda tocava a mesma canção...

Aquela sobre combates e tréguas 

"Quem poderia partir de mim?

Quem desejaria ao menos uma vez ficar?"

 

22 de dez. de 2022

 



É como se nessa luz dos últimos dias 

Estivessem dissolvidas porções de medo e fé

E essa claridade bela e estranha

Fizesse sentir que o presente se tornara uma espécie de passado 

Onde eu já não caibo mais

Ao fechar os olhos então 

Uma brisa fresca esquecida pela primavera no início do verão 

Sopra gentil 

E me faz sonhar em te cantar uma canção 

Sobre um carro veloz cruzando as ruas de uma cidade abandonada 

Indo em direção a um destino onde nossos sonhos todos 

Ressuscitariam como se nunca houvessem se partido 

Já na realidade 

Apenas eu ouço minha voz 

Apenas eu vejo minhas palavras 

Mas você estava realmente lá 

Junto a mim

Buscando pelas luzes de natal 

Fungindo das pequenas dores que se acumularam por anos e anos 

Até descerem violentas e pesadas por nossos corações abaixo 

E já é noite

Os anjos continuam silenciosos 

Talvez esculpindo com paciência um novo lar e seu jardim 

Talvez adormecidos aos portões de algum paraíso inatingível

Agora 

As lágrimas de súplica são também de uma saudade inversa 

Saudade de dias futuros 

Da minha face voltada para a alvorada

Do meu peito sendo abrigo a si mesmo. 

18 de dez. de 2022




Quero que um dia você volte  até aqui 

Em certo ano e hora

E se lembre que em uma noite de dezembro 

Após tantos silenciosos e destrutivos terremotos 

Quando você se atrapalhava ao recitar suas orações

E seu coração estava sozinho e cansado como nunca antes sentiu estar 

Uma voz sublime suspirou 

Que talvez houvesse uma saída de emergência 

Uma alvorada na direção oposta ao que agora prende seu olhar

E ao contrário de toda expectativa

Não foram as asas de algum anjo de pureza duvidosa 

A te levar para o alto 

Para longe

Mas apenas seus próprios pés 

Ainda firmes

Fortes 

No velho campo de batalha então 

Verá que restou não o sangue dos seus inimigos 

Pois nunca teve sua espada em riste contra a noite 

Mas verá a floração do amado jardim 

Do qual aos poucos você precisou se despedir 

Pois que finalmente 

De frente para o sol nascente 

Novas sementes pode depositar em alguma terra virgem

Sorrindo

Chorando 

Repleto de gratidão

Esperança 

E vida.

15 de dez. de 2022

 


Não resta inocência o bastante para acreditar em equívocos 

Quem nos dera existir o acaso 

Assim teríamos um culpado para algo

Além daquele que nos observa nos reflexos

São tempos estranhos

Os céus e suas nuvens 

As ruas e seus edifícios

Tudo parece estar nos devidos lugares 

Contudo eu vi

Senti

Eu vejo

Sinto

Quando tudo isso desaba sem soar alarmes 

Sem se importar com o que está abaixo

É tudo tão silencioso 

Como a voz dos anjos que nunca respondem 

É tudo tão pesado 

Como as ilusões infrutíferas que nos fazem enxergar milagres 

Onde eles jamais habitariam

E nesta parte haveria um porém

E surgiriam então palavras como 

Luz

Alvorada

Esperança

Mas vejo-me parte do cenário desconstruído

E apenas observo então os escombros do céu

E as minhas roupas gastas

Os meus sapatos sujos

As minhas mãos vazias 

E meu coração com seus ininterruptos

E cada vez mais ignorados

Clamores.


14 de dez. de 2022

 


Meu olhar ao crepúsculo tão bonito 

Com suas cores variando entre brasa e âmbar 

Continha pequenos lagos 

Diante ao medo

Diante ao belo

E emanava uma singela e antiga oração de menino 

'Senhor, esteja comigo.'

Em outros tempos passados 

Semelhantes a estes e aos futuros 

Quando o coração já não sabe recitar formulas mágicas 

Ou súplicas mirabolantes às potências celestes 

São apenas três as palavras a rogar colo 

A pedir uma luzinha perene ao atravessar a madrugada 

A esperar que o dia não tarde a alvorecer

E ainda que as horas escorram doloridas 

Amargas como a realidade 

Lentas

Gotejantes

Eu sei

O colo há de me acolher 

A luz há de se acender

A alvorada há de chegar.

 


Um tanto triste 

Que aquilo fosse o mais próximo de alguma coisa 

Mesmo sendo praticamente menos que nada

Pois que era ao menos uma voz 

Um perfume

Um sorriso 

O vislumbre de um porto distante 

Uma terra virgem 

Uma clareira 

Em meio ao caos que dia sim

Outro também 

Deságua sobre todas as coisas 

Danificando as engrenagens

Encharcando as fiações

Apagando as luzes 

Em momento então de rápida e rara emersão

O que resta pulsando na alma

Em busca de alguma cura 

Evoca aqueles já velhos versos gentis

Em louvor às mariposas apaixonadas por chamas 

Em louvor ao luar e sua falsa claridade

Em louvor ao tempo que nada cura 

Nada leva

Mas tudo transforma.



Apenas outro verão em que desabam os céus

E algumas outras coisas mais

Outro dia semelhante ao anterior

E ao próximo 

E eu daqui vendo essa tola criança frágil correndo da chuva 

Correndo da realidade que deságua 

E encharca seu corpo 

Seus pés pequeninos 

Seus olhos que deveriam ter algum brilho

Lutando contra o impossível 

Como em suas fantasias de menino 

Em que nada dói 

Em que de suas mãos jorram luzes

Que afugentam a escuridão

Os trovões me lembram de ontem então 

Daquela voz conhecida 

Antiga 

E de suas canções sobre alguém 

Cujo jugo é suave e o fardo é leve

Um alguém repleto de perfeição 

Mas que é manso e humilde de coração 

Um alguém de quem o abraço seria bem-vindo agora

E as palavras que por tantas vezes sobram

Faltam

Ainda que desaguem também

Abundantes

Porque não fertilizam 

Não nutrem 

Não alcançam 

Porque é como se nada nunca jamais

Fosse ou pudesse ser diferente do que é

Mesmo após a chuva 

Mesmo após a noite interminável.

11 de dez. de 2022



 Uma imensa sala escura 

E um pobre acendedor de velas 

Com fósforos nas mãos

De passos arrastados 

Cansados 

As acendendo 

Uma 

Depois outra

E mais outra 

E a escuridão maciça

Por vezes tangível até 

Quase não se acanha 

Mas cede

Pouco a pouco 

Ao esforço tolo e persistente 

Do velho homem 

Então que

Como em quase todas noites 

Algo

Alguém

Qualquer coisa das sombras 

Abre as janelas 

E penetram as mornas e violentas 

Rajadas de vento que precedem as tempestades 

Todas as suas velas se apagam 

E o homem teme o breu

O silêncio com seu assovio cortante 

A espera que nunca se finda

Uma lágrima escorre do canto esquerdo 

Seus olhos se fecham 

Um suspiro profundo 

É preciso então 

De novo e mais uma vez 

Reacender suas velas 

Afugentar a noite 

Proteger-se das trevas

Toma assim seus fósforos e caminha até a janela

É preciso que seja trancada com mais força dessa vez 

Seus fósforos estão no fim

Suas forças quase extintas

Mas antes...

Antes lança um olhar ao céu 

E então outras lágrimas escorrem

Agora do canto direito da sua face 

E entende 

Só com todas as luzes apagadas

Só com as janelas abertas

É possível ver como brilham as estrelas.

 


Eu não sei disso de não ter o que dizer se por dentro se faz tanto

E quando é assim 

Algo me faz pensar que todos os poetas

Vivos ou mortos ou que ainda virão 

Reunidos com suas mentes borbulhantes

Não seriam tão valiosos quanto uma flor que desabrocha 

Ou aquela visão do sol que se deita 

Sem barulho e arrogância 

E eu os vejo passando pela vida

Não os poetas

Os outros tolos

Como se tudo isso nada fosse

Isso

O ipê profundamente verde 

Afrente do céu azul azul

Manchado de tufos brancos 

Restos das últimas tempestades 

O olhar despindo a forma

Mergulhando além da carne 

Da pele pelos e apelos

Buscando a alma 

Talvez frágil talvez magnânima

E como Adélia

Também só melhoro quando chove

E se abrem as porteiras para eu ir vasculhar dias passados 

Com meus pés na lama 

Roupas encharcadas de memórias 

A procura de alguma saudade bonita 

Um vintém de infância

Uma promessa quebrada 

Uma esperança perdida 

E aí mulher me atrapalha 

Mas é pra mostrar os passarinhos 

Mais belos que a alegria cansativa dos meninos 

O telefone toca e ela se vai 

E volta 

Falando e falando tanta coisa sem sentido

Que eu até me esqueço do que é grave 

Do que dói 

Do que falta 

Do que me fez perder os cabelos 

E os amores todos

Então percebo 

Outra flor sem raridade desabrochou

Neste instante 

Através das mãos pouco belas

E nada santas.

5 de dez. de 2022

 


São versinhos simplórios por aquilo que não se perdeu 

Pelas chuvas mansas abrindo o caminho do verão 

Pelos presépios montados nas antigas praças anunciando a vinda do salvador

São palavras sem tanto valor 

Sem tanto sabor

Mas firmes o bastante 

Para atiçar as brasas que repousam ainda

Ainda...

Em algum canto morno do peito 

Ante a um sorriso impecável 

Uma miragem quase tangível 

Um sentimento impossível

Uma construção de cristal 

Sobre a areia macia da ilusão 

Ainda assim

Falam-me em batalhas

Batalhas tolas

Enquanto fito o horizonte

Em que estouram relâmpagos silenciosos 

Cujo estrondo virá depois 

Nos dias em que os olhos pesarem 

As mãos tremerem sem quem as segure 

E os pés não escalarem as árvores para pendurar luzes de natal 

Mas hoje

Hoje a tempestade desliza longínqua

Inofensiva 

As mãos esculpem com firmeza mais uma despretensiosa relíquia 

A ser esquecida na prateleira das longas horas

O caminhar é certeiro para longe daqueles estranhos dias inglórios 

E o olhar ainda reluz 

Mesmo que frágil e bruxuleante

Desafiando a profunda noite escura. 

4 de dez. de 2022

 


Ainda há 

Quase completamente ocultas entre os estrondos 

Entre as horas velozes 

E dias amargos 

Manhãs de domingo 

Em que o único som é o do vento

Fazendo dançar as folhas 

Fazendo rodopiar as pequenas borboletas amarelas 

Enquanto visitam suas flores 

Ainda há a claridade solar atravessando delicadamente as cortinas 

E é então como se nada doesse 

Como se nada faltasse

E tudo estivesse no lugar em que deve estar 

Em momentos assim eu quase consigo imaginar 

Teu olhar amoroso 

Teu sorriso iluminado 

Protegendo e guiando 

Como o maior dos mestres

Por isso emociona ver as luzinhas anunciando tua chegada

Pelas praças

Pelas ruas

Pelas varandas humildes 

Pelos corações alquebrados

Por isso todas as palavras não bastam

E nem toda poesia 

Descreve a mansidão com que ainda nos acolhe em teu santo abraço 

E enquanto falam em teu nome trajados de ouro

Encarcerados em tempos suntuosos onde não porei jamais os pés 

Eu daqui 

Tão pequeno

Te vejo na chuva que verdeja os campos 

Na força e na gentileza de minha mãe 

Nos sonhos em que caminha também descalço ao meu lado 

Como se eu quase fosse digno de segurar tuas mãos

Como se eu quase fosse digno de ser teu irmão 

Eu te sinto aqui

Dentro desse peito que é repleto de máculas

Mas que um dia 

Eu sei

Também será repleto de Amor. 

1 de dez. de 2022

 


Como este

Já nasceram dias simples 

Mesmo com os discos roubados

As canções silenciadas 

Os sonhos impossíveis

Uma perigosa inocência 

Houve como este

Um céu bonito 

De luz macia atravessando as nuvens lentas

Iluminando as flores do jardim 

Os anos levados pelos ventos então 

E tudo de sagrado e tudo de profano 

Que foi amado e buscado 

Por entre veredas longas e estranhas 

Repousa calmamente como em um leito de rio

Até que eu 

Em horas assim

Mergulhe meus pés nas aguas frias

Caminhando e orando 

Ao que quer que de santificado 

Ainda exista acima e dentro de mim

Agora o vento sopra fraco e gentil

Como as palavras 

Sempre elas 

Apesar de tudo

Que tentam dar sentido 

A um coração que nunca se apaga

E também nunca se cura por completo.