23 de jun. de 2025

Do rio ao mar




Para que não me doa a dor do irmão 

É preciso que eu feche os olhos 

É preciso que eu não tenha sequer olhos

Mas então os ouvidos ouvem e sangram essa dor


E para que não sangrem 

É preciso que eu tape os ouvidos

E que eu finja não continuar ouvindo

Mas então um grito rasga a garganta 

Um urro faminto

Dilacerante 


E para que eu não grite

É preciso que eu não tenha boca 

Que se selem para sempre meus lábios 

Mas então as mãos tateiam a escuridão 

Ferem-sem em brasas humanas 


E para que eu não as toque

É preciso não ter mãos 

Mas então os pés caminham por escombros 

Escombros do que já foram vidas 


E eu caio também exausto ante ao horror

Com o rosto à Terra 

Rente ao pó que todos somos

Abraçando essa outra mãe tão castigada 


E já não contenho o pranto

Pois sou eu também aquele solo ferido

Também sou aquilo que resta da devastação 

E sinto:

Para que não me doa o que dói no outro 

É preciso que eu não tenha alma.


🇵🇸

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