23 de jun. de 2025

Do rio ao mar




Para que não me doa a dor do irmão 

É preciso que eu feche os olhos 

É preciso que eu não tenha sequer olhos

Mas então os ouvidos ouvem e sangram essa dor


E para que não sangrem 

É preciso que eu tape os ouvidos

E que eu finja não continuar ouvindo

Mas então um grito rasga a garganta 

Um urro faminto

Dilacerante 


E para que eu não grite

É preciso que eu não tenha boca 

Que se selem para sempre meus lábios 

Mas então as mãos tateiam a escuridão 

Ferem-sem em brasas humanas 


E para que eu não as toque

É preciso não ter mãos 

Mas então os pés caminham por escombros 

Escombros do que já foram vidas 


E eu caio também exausto ante ao horror

Com o rosto à Terra 

Rente ao pó que todos somos

Abraçando essa outra mãe tão castigada 


E já não contenho o pranto

Pois sou eu também aquele solo ferido

Também sou aquilo que resta da devastação 

E sinto:

Para que não me doa o que dói no outro 

É preciso que eu não tenha alma.


🇵🇸

16 de jun. de 2025

"Borboletas de Esperança"


 Vídeo produzido pelos alunos da Escola Estadual "Professora Yone Dias de Aguiar" baseado no meu livro "Ruas de Domingo - prosa poética em quarentena" e "A vida não é útil" de Ailton Krenak.

1 de jun. de 2025

A manhã já vem



 No altar da casa de orações, a frase:

'Em tempos de guerra

Nunca deixe de perdoar'

No altar alojado no peito, a canção:

'Acho que seguirei meu coração 

É um lugar muito bom para começar'


E estamos sempre nessa encruzilhada com o tempo 

Sem saber se devemos esperar 

Ou se já estamos muito atrasados 

Pois que o mundo ruge voraz não muito longe

Mas muito perto as ruas estão calmas 

Preenchidas por um perfume mágico de infância


É certo que as mãos ainda tateiam pela escuridão 

Na ancestral busca de sentirem-se entrelaçadas a outras 

E já nem nos sonhos há plena paz

Mas ainda sobraram algumas folhas em branco 

E algumas palavras imperecíveis no coração 

Sinto então que é certo: 'logo mais a manhã já vem'.

E aguardei

 

Ainda me lembro do tempo em que se falava sobre o que se foi 
Sobre o que partiu depois de ocupar todos os cômodos da alma 
Do silêncio dolorido que se faz quando as canções terminam 
Da escuridão que se alastra depois que os sorrisos se fecham 
Da dor que era projetada em um prisma 
Para se dividir em cores tantas 
Quase até se tornar poesia 
Hoje se fala sobre o que não chega
Sobre o que não se aproxima tempo suficiente para aquecer 
Para criar aquelas memórias do que se parte 
São novos tempos 
Mais frios, mais líquidos, mais veloses 
Ainda assim aguardei a vinda 
Pintei os armários, comprei rosas do deserto, tirei o pó dos móveis 
E aguardei 
Sabendo que a porta não se abriria 
E aguardei 
Sabendo que a voz não mais se ouviria 
E aguardei 
Sabendo que você não existe.