31 de mai. de 2025

Sismógrafo




Esse sismógrafo alojado no peito 

Atento às menores oscilações 

Aos menores tremores 

Feito de um cristal puro e delicado 

Sensível aos sutis silêncios 

Às ásperas palavras 

Gravando na alma o gosto amargo 

Do novo adeus 

Tão idêntico a todos os outros adeuses

Que desafiam a lógica 

E chegam sempre antes do encontro 

E tudo se repete 

A agulha risca a pele 

Cria sulcos profundos 

Para cima e para baixo 

E assim outra vez me perco 

E procuro por mim 

Nas mesmas canções gastas 

Nas mesmas ruas frias de outono 

Nas mesmas estrelas sempre cadentes

Nos mesmos perfumes que logo evanescem

Nos mesmos poentes pálidos

Nos mesmos braços que nunca 

Nunca me estarão verdadeiramente abertos.

28 de mai. de 2025

É o bastante



Lembro bem das palavras da poetisa 

Talvez até tenha existido amor 

Mas nunca amor o bastante 

Para que se permanecesse 

E não que tenha doído muito tal verdade 

Mas fez-se um silêncio profundo então 

O mesmo silêncio que é feito uma grande sala escura 

Repleta de palavras emaranhadas, adormecidas

Mas há ainda dias assim 

Em que as ruas antigas contam novas histórias 

Duas meninas de uniforme escolar saltam em uma esquina 

Tentando apanhar pitangas da árvore alta 

O sol se põe à frente da igrejinha 

Com seus poucos e sinceros fiéis 

O jardim bem lentamente vai se recobrindo de flores roxas e vermelhas

Feito a alma 

E dissolvido na brisa fria que começa a soprar 

Há um perfume sutil de esperança 

Que volta e meia ressurge para me alegrar 

Não é muito

Eu sei

E já perdemos tanto 

Só que ainda não é tão tarde 

Ainda estamos aqui

Ainda conseguimos sentir

Então

Por hoje

Mesmo o pouco

É o bastante.

18 de mai. de 2025

 

O outono rega a cidade de uma claridade límpida, pura, fria.
E as horas cobram, os carros avançam, 
mas eu paro pelas vias por um verso quase bonito.
Porque os olhos marejam sem motivo, 
feito fosse aquele passado em que se ousava sonhar.
E paira então pelo ar uma melodia suave, gentil.
Como fez falta o doce som emanado pelo coração...
Talvez ele não tenha esquecido como cantar, afinal.
Pois ainda há um resquício imaculado de manhã,
Ainda há essa forma confusa e bonita de fé,
Ainda há tempo.



Houve um tempo em que a brisa assim fria 

Que desliza pelas ruas carregando palavras e folhas 

Trazia ao mesmo tempo algo de uma poesia ancestral 

que nunca se perde 


Os anos passaram céleres

A face já não é a mesma

A alma também não 

Já rasos sucos no reflexo 

Ainda profundos sulcos na alma

Mas percebo que alguma parte do coração permanece a mesma 

Imaculada


E quando sentimentos augustos derramam luzes suaves sobre ele

Eu vejo que de arbustos espinhosos

Desabrocham flores de imperecível beleza 

Sinto então 

Que talvez reste alguma chance

Que talvez não seja tarde demais.