29 de dez. de 2022

Tudo começou com uma canção 

Também com um "sim"

Mas principalmente com uma canção

Pois que antes só havia o silêncio 

E o silêncio feria todas as obras da Criação 

Usurpava-lhes a vida

E o silêncio mantinha todas as sementes adormecidas na terra

Todas as esperanças no fundo de uma caixa de horrores

Então o som se fez

A voz 

O riso

O nome

E as lágrimas nasceram também 

E desceram até os confins da alma 

E houve um sentimento profundo por tudo o que não se pode ser 

O que ainda será 

Então lírios da paz foram plantados junto a pequenas rosas 

Os mesmos lírios plantados na despedida do grande último amor

As mesmas rosas plantadas na despedida da última pequena ilusão 

E na manhã quase sem luz 

Algo de tão brilhante 

De pele dourada 

Foi avistado na loja de flores 

Carregando orquídeas 

Carregando toda beleza do mundo 

E coração pode de novo por um instante ouvir 

E ainda tocava a mesma canção...

Aquela sobre combates e tréguas 

"Quem poderia partir de mim?

Quem desejaria ao menos uma vez ficar?"

 

22 de dez. de 2022

 



É como se nessa luz dos últimos dias 

Estivessem dissolvidas porções de medo e fé

E essa claridade bela e estranha

Fizesse sentir que o presente se tornara uma espécie de passado 

Onde eu já não caibo mais

Ao fechar os olhos então 

Uma brisa fresca esquecida pela primavera no início do verão 

Sopra gentil 

E me faz sonhar em te cantar uma canção 

Sobre um carro veloz cruzando as ruas de uma cidade abandonada 

Indo em direção a um destino onde nossos sonhos todos 

Ressuscitariam como se nunca houvessem se partido 

Já na realidade 

Apenas eu ouço minha voz 

Apenas eu vejo minhas palavras 

Mas você estava realmente lá 

Junto a mim

Buscando pelas luzes de natal 

Fungindo das pequenas dores que se acumularam por anos e anos 

Até descerem violentas e pesadas por nossos corações abaixo 

E já é noite

Os anjos continuam silenciosos 

Talvez esculpindo com paciência um novo lar e seu jardim 

Talvez adormecidos aos portões de algum paraíso inatingível

Agora 

As lágrimas de súplica são também de uma saudade inversa 

Saudade de dias futuros 

Da minha face voltada para a alvorada

Do meu peito sendo abrigo a si mesmo. 

18 de dez. de 2022




Quero que um dia você volte  até aqui 

Em certo ano e hora

E se lembre que em uma noite de dezembro 

Após tantos silenciosos e destrutivos terremotos 

Quando você se atrapalhava ao recitar suas orações

E seu coração estava sozinho e cansado como nunca antes sentiu estar 

Uma voz sublime suspirou 

Que talvez houvesse uma saída de emergência 

Uma alvorada na direção oposta ao que agora prende seu olhar

E ao contrário de toda expectativa

Não foram as asas de algum anjo de pureza duvidosa 

A te levar para o alto 

Para longe

Mas apenas seus próprios pés 

Ainda firmes

Fortes 

No velho campo de batalha então 

Verá que restou não o sangue dos seus inimigos 

Pois nunca teve sua espada em riste contra a noite 

Mas verá a floração do amado jardim 

Do qual aos poucos você precisou se despedir 

Pois que finalmente 

De frente para o sol nascente 

Novas sementes pode depositar em alguma terra virgem

Sorrindo

Chorando 

Repleto de gratidão

Esperança 

E vida.

15 de dez. de 2022

 


Não resta inocência o bastante para acreditar em equívocos 

Quem nos dera existir o acaso 

Assim teríamos um culpado para algo

Além daquele que nos observa nos reflexos

São tempos estranhos

Os céus e suas nuvens 

As ruas e seus edifícios

Tudo parece estar nos devidos lugares 

Contudo eu vi

Senti

Eu vejo

Sinto

Quando tudo isso desaba sem soar alarmes 

Sem se importar com o que está abaixo

É tudo tão silencioso 

Como a voz dos anjos que nunca respondem 

É tudo tão pesado 

Como as ilusões infrutíferas que nos fazem enxergar milagres 

Onde eles jamais habitariam

E nesta parte haveria um porém

E surgiriam então palavras como 

Luz

Alvorada

Esperança

Mas vejo-me parte do cenário desconstruído

E apenas observo então os escombros do céu

E as minhas roupas gastas

Os meus sapatos sujos

As minhas mãos vazias 

E meu coração com seus ininterruptos

E cada vez mais ignorados

Clamores.


14 de dez. de 2022

 


Meu olhar ao crepúsculo tão bonito 

Com suas cores variando entre brasa e âmbar 

Continha pequenos lagos 

Diante ao medo

Diante ao belo

E emanava uma singela e antiga oração de menino 

'Senhor, esteja comigo.'

Em outros tempos passados 

Semelhantes a estes e aos futuros 

Quando o coração já não sabe recitar formulas mágicas 

Ou súplicas mirabolantes às potências celestes 

São apenas três as palavras a rogar colo 

A pedir uma luzinha perene ao atravessar a madrugada 

A esperar que o dia não tarde a alvorecer

E ainda que as horas escorram doloridas 

Amargas como a realidade 

Lentas

Gotejantes

Eu sei

O colo há de me acolher 

A luz há de se acender

A alvorada há de chegar.

 


Um tanto triste 

Que aquilo fosse o mais próximo de alguma coisa 

Mesmo sendo praticamente menos que nada

Pois que era ao menos uma voz 

Um perfume

Um sorriso 

O vislumbre de um porto distante 

Uma terra virgem 

Uma clareira 

Em meio ao caos que dia sim

Outro também 

Deságua sobre todas as coisas 

Danificando as engrenagens

Encharcando as fiações

Apagando as luzes 

Em momento então de rápida e rara emersão

O que resta pulsando na alma

Em busca de alguma cura 

Evoca aqueles já velhos versos gentis

Em louvor às mariposas apaixonadas por chamas 

Em louvor ao luar e sua falsa claridade

Em louvor ao tempo que nada cura 

Nada leva

Mas tudo transforma.



Apenas outro verão em que desabam os céus

E algumas outras coisas mais

Outro dia semelhante ao anterior

E ao próximo 

E eu daqui vendo essa tola criança frágil correndo da chuva 

Correndo da realidade que deságua 

E encharca seu corpo 

Seus pés pequeninos 

Seus olhos que deveriam ter algum brilho

Lutando contra o impossível 

Como em suas fantasias de menino 

Em que nada dói 

Em que de suas mãos jorram luzes

Que afugentam a escuridão

Os trovões me lembram de ontem então 

Daquela voz conhecida 

Antiga 

E de suas canções sobre alguém 

Cujo jugo é suave e o fardo é leve

Um alguém repleto de perfeição 

Mas que é manso e humilde de coração 

Um alguém de quem o abraço seria bem-vindo agora

E as palavras que por tantas vezes sobram

Faltam

Ainda que desaguem também

Abundantes

Porque não fertilizam 

Não nutrem 

Não alcançam 

Porque é como se nada nunca jamais

Fosse ou pudesse ser diferente do que é

Mesmo após a chuva 

Mesmo após a noite interminável.

11 de dez. de 2022



 Uma imensa sala escura 

E um pobre acendedor de velas 

Com fósforos nas mãos

De passos arrastados 

Cansados 

As acendendo 

Uma 

Depois outra

E mais outra 

E a escuridão maciça

Por vezes tangível até 

Quase não se acanha 

Mas cede

Pouco a pouco 

Ao esforço tolo e persistente 

Do velho homem 

Então que

Como em quase todas noites 

Algo

Alguém

Qualquer coisa das sombras 

Abre as janelas 

E penetram as mornas e violentas 

Rajadas de vento que precedem as tempestades 

Todas as suas velas se apagam 

E o homem teme o breu

O silêncio com seu assovio cortante 

A espera que nunca se finda

Uma lágrima escorre do canto esquerdo 

Seus olhos se fecham 

Um suspiro profundo 

É preciso então 

De novo e mais uma vez 

Reacender suas velas 

Afugentar a noite 

Proteger-se das trevas

Toma assim seus fósforos e caminha até a janela

É preciso que seja trancada com mais força dessa vez 

Seus fósforos estão no fim

Suas forças quase extintas

Mas antes...

Antes lança um olhar ao céu 

E então outras lágrimas escorrem

Agora do canto direito da sua face 

E entende 

Só com todas as luzes apagadas

Só com as janelas abertas

É possível ver como brilham as estrelas.

 


Eu não sei disso de não ter o que dizer se por dentro se faz tanto

E quando é assim 

Algo me faz pensar que todos os poetas

Vivos ou mortos ou que ainda virão 

Reunidos com suas mentes borbulhantes

Não seriam tão valiosos quanto uma flor que desabrocha 

Ou aquela visão do sol que se deita 

Sem barulho e arrogância 

E eu os vejo passando pela vida

Não os poetas

Os outros tolos

Como se tudo isso nada fosse

Isso

O ipê profundamente verde 

Afrente do céu azul azul

Manchado de tufos brancos 

Restos das últimas tempestades 

O olhar despindo a forma

Mergulhando além da carne 

Da pele pelos e apelos

Buscando a alma 

Talvez frágil talvez magnânima

E como Adélia

Também só melhoro quando chove

E se abrem as porteiras para eu ir vasculhar dias passados 

Com meus pés na lama 

Roupas encharcadas de memórias 

A procura de alguma saudade bonita 

Um vintém de infância

Uma promessa quebrada 

Uma esperança perdida 

E aí mulher me atrapalha 

Mas é pra mostrar os passarinhos 

Mais belos que a alegria cansativa dos meninos 

O telefone toca e ela se vai 

E volta 

Falando e falando tanta coisa sem sentido

Que eu até me esqueço do que é grave 

Do que dói 

Do que falta 

Do que me fez perder os cabelos 

E os amores todos

Então percebo 

Outra flor sem raridade desabrochou

Neste instante 

Através das mãos pouco belas

E nada santas.

5 de dez. de 2022

 


São versinhos simplórios por aquilo que não se perdeu 

Pelas chuvas mansas abrindo o caminho do verão 

Pelos presépios montados nas antigas praças anunciando a vinda do salvador

São palavras sem tanto valor 

Sem tanto sabor

Mas firmes o bastante 

Para atiçar as brasas que repousam ainda

Ainda...

Em algum canto morno do peito 

Ante a um sorriso impecável 

Uma miragem quase tangível 

Um sentimento impossível

Uma construção de cristal 

Sobre a areia macia da ilusão 

Ainda assim

Falam-me em batalhas

Batalhas tolas

Enquanto fito o horizonte

Em que estouram relâmpagos silenciosos 

Cujo estrondo virá depois 

Nos dias em que os olhos pesarem 

As mãos tremerem sem quem as segure 

E os pés não escalarem as árvores para pendurar luzes de natal 

Mas hoje

Hoje a tempestade desliza longínqua

Inofensiva 

As mãos esculpem com firmeza mais uma despretensiosa relíquia 

A ser esquecida na prateleira das longas horas

O caminhar é certeiro para longe daqueles estranhos dias inglórios 

E o olhar ainda reluz 

Mesmo que frágil e bruxuleante

Desafiando a profunda noite escura. 

4 de dez. de 2022

 


Ainda há 

Quase completamente ocultas entre os estrondos 

Entre as horas velozes 

E dias amargos 

Manhãs de domingo 

Em que o único som é o do vento

Fazendo dançar as folhas 

Fazendo rodopiar as pequenas borboletas amarelas 

Enquanto visitam suas flores 

Ainda há a claridade solar atravessando delicadamente as cortinas 

E é então como se nada doesse 

Como se nada faltasse

E tudo estivesse no lugar em que deve estar 

Em momentos assim eu quase consigo imaginar 

Teu olhar amoroso 

Teu sorriso iluminado 

Protegendo e guiando 

Como o maior dos mestres

Por isso emociona ver as luzinhas anunciando tua chegada

Pelas praças

Pelas ruas

Pelas varandas humildes 

Pelos corações alquebrados

Por isso todas as palavras não bastam

E nem toda poesia 

Descreve a mansidão com que ainda nos acolhe em teu santo abraço 

E enquanto falam em teu nome trajados de ouro

Encarcerados em tempos suntuosos onde não porei jamais os pés 

Eu daqui 

Tão pequeno

Te vejo na chuva que verdeja os campos 

Na força e na gentileza de minha mãe 

Nos sonhos em que caminha também descalço ao meu lado 

Como se eu quase fosse digno de segurar tuas mãos

Como se eu quase fosse digno de ser teu irmão 

Eu te sinto aqui

Dentro desse peito que é repleto de máculas

Mas que um dia 

Eu sei

Também será repleto de Amor. 

1 de dez. de 2022

 


Como este

Já nasceram dias simples 

Mesmo com os discos roubados

As canções silenciadas 

Os sonhos impossíveis

Uma perigosa inocência 

Houve como este

Um céu bonito 

De luz macia atravessando as nuvens lentas

Iluminando as flores do jardim 

Os anos levados pelos ventos então 

E tudo de sagrado e tudo de profano 

Que foi amado e buscado 

Por entre veredas longas e estranhas 

Repousa calmamente como em um leito de rio

Até que eu 

Em horas assim

Mergulhe meus pés nas aguas frias

Caminhando e orando 

Ao que quer que de santificado 

Ainda exista acima e dentro de mim

Agora o vento sopra fraco e gentil

Como as palavras 

Sempre elas 

Apesar de tudo

Que tentam dar sentido 

A um coração que nunca se apaga

E também nunca se cura por completo.

24 de nov. de 2022

 


Como não ter medo?

Por vezes a realidade é uma dama cruel

Exata e fria

Como que de olhos vendados

De ouvidos tampados 

Às nossas súplicas e prantos 

E o que é a poesia

Senão essa adaga dourada

Bela e frágil 

Em riste para essa quimera gigantesca

Dantesca 

Que ruge faminta sem cessar?

Mas quando quase me rendo

Ao longe espocam pequenas felicidades ilusórias 

A noite quando chega

É recebida pelo perfume do jasmineiro em flor

As luzes de natal que se aproxima

Encantam nosso olhar cansado

A coragem de minha mãe 

Armada de esperança e fé 

Dilui o medo 

Como chuva de verão limpando a atmosfera

E por fim meu coração bate forte 

Firme

Como se nunca houvesse se partido

Em tantos pedaços 

Tantas vezes

Assim olho então a nobre e brava dama

Fundo nos olhos

E sorrio

Damos as mãos 

Decretamos trégua 

Ao menos por essa noite.

21 de nov. de 2022

 


O sonho primordial ronda pelas madrugadas quando apenas há escuro e ausência 

Arranha portas e janelas 

Lamenta atrás das cortinas 

Me faz acender as luzes 

Errar as palavras das orações 

O nome dos anjos que ainda não voaram para longe

Soltam murmúrios na minha atmosfera

E eu me lembro de quando era um satélite danificado 

Sem claridade própria 

Sem mais uma rota certa

Girando ao redor de uma estrela que parecia imensa

Intocável

Uma inatingível ilusão magnífica 

E eu me lembro dos versos ruins onde nunca pousaria seu olhar 

Eu me lembro

Como se fosse agora o mesmo tempo simples de outrora

E todo esse vazio fosse a face mais grave da realidade

E então eu quase posso ver suas mãos dadas 

Eu quase posso fingir que eu possuo algo que possa perder dessa vez

Mas é apenas mais uma carta endereçada ao fogo pouco antes da alvorada

Mais um suspiro profundo pela confusa mistura do que não foi

Junto ao que jamais será 

E as canções que vêm ao socorro

Tão gastas canções

São gentis luminescências no breu profundo 

Dolorido 

Que apontam um caminho

Como uma trilha de pirilampos

Rumo a mais um esquecimento.


19 de nov. de 2022




Era 1997

E nós

Pequenas crianças diante da grande tela

Onde o transatlântico cruzava oceanos

Fazendo nossos olhos brilharem como as estrelas de uma noite glacial 

Enquanto sentíamos o perfume encantado

Que tempos mais simples exalam

Então 

As primeiras linhas

Os primeiros pecados

As primeiras despedidas

E o mundo se tornou tão menor desde aqueles dias

Mesmo depois daqueles olhos da cor mais rara na natureza 

Mesmo depois do amor e da desilusão

E as ruas da nossa velha cidade ainda são praticamente as mesmas

Um pouco menos seguras

Um pouco menos floridas 

E todos que aqui caminham 

Seguem como se soubessem para onde estão indo

Enquanto olham cada vez mais apenas para dentro de si mesmos 

E todas as novas canções 

Continuam como lamentos por tudo aquilo 

Que não foi

Que não poderia ser

Mas o jasmineiro volta a florescer

E o céu reluz nas suas horas finais

Exatamente como sempre fora

Acima nada está diferente

Há também as primeiras luzes de natal surgindo 

As pracinhas enfeitadas pelas cansadas senhoras 

O sorriso de minha mãe cheio de esperança 

Nada é perfeito

Mas há em tudo algo de tão Belo

Como se a realidade não fosse uma inimiga insensível

Mas quem sabe

Uma elegante deusa

Que todos os dias esculpe

E oferece

Uma nova alvorada.

 



Eu estava ali sonhando com os olhos bem abertos e fixos

Com uma segunda presença, uma primeira voz, uma antiga canção

Uma nova chance

Criando memórias etéreas de um tempo que nunca existiu ou irá existir 

Mas onde brilhávamos e dançávamos como se nós e o mundo estivéssemos curados

E não houvesse mais 

Por um tempo

O que temer, do que fugir, do que se esconder

Sendo um tão grande quanto o outro 

Enquanto olhamos para a mesma direção

Um ao outro

E tudo passando diante de nós

Sem nos atacar por uma única vez 

Ao menos

Sem contaminar nosso coração com medo e lágrimas 

Lágrimas que escorreriam por motivos contrários 

Aos que quase sempre escorrem 

E transformam o meio-dia em meia-noite

Por fim

Segurando sua mão

Admirando seu sorriso 

Caminho rumo à saída 

Desse lento fim dos tempos. 


17 de nov. de 2022

 


Não preciso pedir que ignore as palavras que lanço ao fantasma que restou daquilo que um dia foi maior que quase tudo.

Tudo isso, qualquer coisa sobre isso, é essa brisa suave que move as cortinas e desaparece por si mesma.

Apenas um murmúrio da memória que logo se cala...

Mas eu imagino seu caminhar, seu silêncio, ainda como aquela criatura nobre demais até para o chão abaixo dos próprios pés. 

Essas letras que gotejam dos dedos, do coração, deixaram de procurar sentido há algum tempo, deixaram de comover desde que aquela porta se fechou, talvez para sempre. 

São tempos frágeis, de vitórias modestas, de expectativas vitais, de fanáticos pelas ruas, de dias longos e sorrisos irreais. 

Então escavo a alma, como um artista pouco hábil lapidando uma pedra de pouco valor, buscando algum brilho oculto, algum reflexo raro. 

E assim volto sempre aos mesmos caminhos, na esperança de alguma relíquia esquecida entre os escombros,

E assim volto sempre aos mesmos templos, na esperança de ouvir a voz de algum anjo ainda a entoar alguma sagrada canção.

Nada do que foi será novamente, como já foi escrito em algum verão menos cruel,

Mas ficaram as marcas dos dilúvios, das estiagens, das madrugadas de uma escuridão muito profunda, da ferida cicatrizada com o toque de um ferro em brasa. 

15 de nov. de 2022




 Lembro-me de uma canção 

Daqueles tempos em que a chuva acalmava as espadas

Lavava o sangue dos campos de batalha 

E as lágrimas dos olhos mais cansados 

Lembro-me ainda de tudo

Nitidamente 

Como se os anos não houvessem roubado tanto 

Palavras 

Promessas

Histórias 

E a cada lembrar aquilo se revive 

Refloresce 

Éramos meninos encantados 

De um tempo em que não havia tempo

Ainda somos 

Talvez

De corações tão puros 

Que os segurávamos com nossos pequenos dedos

Ao notar a mais suave brisa fria

Lembro-me de uma voz

De não sentir medo

De um abraço secreto

Sincero

Nos sonhos inestimáveis 

Lembro-me de um jardim 

Da face de Deus na face de Seus filhos 

Lembro-me do Amor

Assim como Ele ainda se lembra de mim.

11 de nov. de 2022

 


Foi ontem

O abraço cheio de ternura,

Algumas lágrimas diante da imensidão incerta do futuro,

Como que dizendo:

O pequeno ponto escuro no peito 

Jamais contaminará todo amor que ali há.

E no velho papel amassado

A lembrança rabiscada:

A vida ainda é forte,

E refloresce.

Agora sinto que chove...

E as tintas frágeis com que pintamos nossos sonhos

Ameaçam escorrer pelos pilares

Que sustentam o coração.

Mas sei que a esperança surge nessas estações assim

Duras,

Inexplicáveis,

Quando as orações perdem suas palavras ordenadas 

E resta o olhar para o horizonte,

Para alguma beleza singela,

Para algum sorriso gentil.

Dói, como não? 

Os anos passando rápido como as águas de um rio

Que ressoa murmúrios sobre o fim daqueles tempos dourados,

Daqueles tempos em que o tempo não existia,

E se vivia de instantes

Costurados na infinita colcha de retalhos da existência.

Hoje então chove, como dito,

Mas chove feito entoado pela canção:

A chuva que deságua feroz 

Alimenta a nascente da vida que o medo tenta,

Sempre sem sucesso,

Secar.

8 de nov. de 2022

 


Nada mais sobre aqueles dias

Mereceria qualquer sílaba

Qualquer suspiro

Contudo

me lembro 

Um farol inatingível 

Aquela luz magnânima confundindo meu olhar

E eu deixando a terra firme

Dando braçadas em um mar escuro

Em direção à sublime claridade 

Que desapareceu ao meu toque mais delicado

Então eu amei a lembrança daquilo que tanto cintilava

Eu amei a memória 

Eu amei a dor

Enquanto as águas me envolviam com indiferença 

E tudo ao redor era imensidão 

E vazio

Tanto vazio

Centenas de páginas e lágrimas depois

Milhares de versos e horas após 

Aporto novamente nos instantes que antecedem a alvorada 

E todas as vozes estão frias aqui dentro

Caladas

Mas há a minha

Ressoando ininterrupta

Como se ainda clamasse

Como se ainda importasse

E eu começo a entender que era eu

A luz distante

A chuva constante 

O oceano obscuro

O porto de onde se partiu

E para onde

Finalmente

se regressou.


 


Não seria a primeira vez 

Que ao ser aquecido por uma voz terna

O silêncio fingiria se tornar menos cruel

E nos cantos da noite profunda

Brilhariam pequenos encantos intocáveis 


Essas pequenas gotas de um elixir mágico 

Que perde seu poder cada vez mais rápido

E logo só resta esse tolo esforço 

Em usar palavras exaustas para lapidar uma escultura 

Que derrete mesmo ao mais gentil toque 


São outros velhos dias

E eu observo todas as antigas poderosas memórias

Agora desfalecidas

Inofensivas 

Encolhidas pelos vastos cômodos vazios da alma


Então uma curta canção

Chovendo sobre o peito que tenta sempre florir

Mas cuja estiagem nunca cessa

E mais versos insípidos

Sobre a saudade de promessas nunca feitas 


Então uma pequena canção 

E todo o mundo a ser reconstruído outra vez 

De novo e de novo

Como um eco se perdendo na escuridão 

De mais uma madrugada como essa.

 


Todas as fontes de onde jorravam aquelas linhas incandescentes 

Parecem ter secado. 

Palavras como adeus, amor, esperança; 

Palavras como luz, espera, sombra...

Exaustas então se deitam pelos caminhos idênticos, vazios,

Aguardando o esquecimento.

Passou o tempo das quimeras,

Depois passou o tempo seguinte dos sonhos,

Depois passou o tempo seguinte da saudade,

E aos poucos fui me distanciando,

Distanciado passo após passo,

Da imensa vitrine abarrotada

Em que todos os expostos cintilam tanto,

E buscam a posição perfeita para causar encanto.

E meu espaço foi sendo tomado,

Minha voz ficando mais baixa,

Meu coração batendo mais seguro,

Menos quente. 

Pois que após cada pequena vitória

Ou grande derrota

Deságua quase que sem aviso a forte chuva

Que prenuncia nova batalha.

E eu assim fecho os olhos...

E quando os abro,

É quase dezembro,

E há ipês brancos florindo

Mostrando que talvez a vida

Ainda cometa alguns erros bonitos...

'Aguente firme.'

Diz por fim a canção...

'Aguente firme até a próxima estação.

É possível que algum anjo gentil logo acolha sua oração.'

4 de nov. de 2022

 


Tantos estrondos por todos os lados,

Não se calam.

Não se calam.

Estilhaços afiados penetrando na mente

Enquanto essa voz gentil demais,

Essa canção suave demais,

Tenta limpar da atmosfera 

A grossa camada escura de ilusão e mentira

E alcançar algo imenso e sagrado 

Que de algum lugar nos observa.

Mas há no horizonte luz tamanha:

Não se apaga.

Não se apaga.

E o que caminha em sua direção 

É aquilo que no peito ainda bate.

Se deixarmos, 

Cruéis como são,

Roubariam até a claridade afrente dos nossos passos,

Nossa primavera, nossa poesia.

Então insisto,

Insistimos,

Temerosos, exaustos,

Insistimos.

Porque se há vida, 

Há esperança, dizem.

Então dançamos pelas esquinas,

Acreditamos que o pesadelo vai acabar,

Abraçamos como se o pior já tivesse passado,

E sorrimos,

Como se o amor existisse.

28 de out. de 2022

 


Os passos continuam pelas ruas

Só que mais lentos, desatentos,

Guiando olhares que esbarram em um horizonte repleto de enigmas.


A cidade é um coração que pulsa em silêncio,

Sem vozes, cansada,

Como um campo antes da batalha.


Mas há um hino, tímido, ecoando,

Prenunciando uma estrela que voltará a brilhar,

Falando de um povo ainda em riste, resistindo. 


Alguns dizem que adentramos para sempre em um reino sombrio,

Um vasto vale de desesperança sem volta,

Povoado por bestiais soberanos,


Outros, que a Luz não tarda,

E essa fria escuridão é o prelúdio da inevitável alvorada.

O sol se erguerá, iluminando as faces afáveis.


E eu rogo aos anjos que despertem do sono que um dia lhes permiti...

O santificado peso do amor arqueia nossas almas frágeis.

Mas antes o peso dele, que a leveza da indiferença.

25 de out. de 2022

 


Tudo já não tem nada 

Daqueles tempos simplificados 

Em que fabricávamos pequenas memórias preciosas 

E as guardávamos nas prateleiras da alma sem saber

Que não muito depois

O tempo nos cobriria com uma névoa amarga e densa de realidade

Quase nos sufocando 

Quase nos despertando 

Aqui dentro apenas temos vivido na espera de um velho milagre 

Que ao menos mantenha esse trem perigoso nos trilhos por mais alguns instantes

Enquanto lá fora hordas de lunáticos  fantasiados de palhaços malignos

Dançam sobre covas rasas e recentes

Mas como pequenas absolvições

A chuva no auge da estiagem

O jardim resistindo e florescendo 

A nova doce e forte canção 

Sobre sentimentos escarlates 

O cheiro do quarto sempre vazio

Estranho e bom

Como o perfume das cortinas daquela antiga locadora de filmes 

Em que íamos quando jovens

Então pelos corredores de lembranças pequenos brilhos despencam lentamente 

Uma garoa delicada acariciando o corpo envergonhado 

Que naqueles antigos dias talvez até tenha conhecido o amor 

Agora nos sonhos confusos

Há sempre uma mão entre as minhas mãos

Há uma fortaleza 

E há seu sorriso 

Embora sua face nunca esteja voltada para mim.

21 de out. de 2022

 

Como há muito não era e não deveria ser

O céu imóvel 

Sem poesia

Nenhum verso oculto por entre as nuvens estéreis 

E as canções

Tão novas canções

Quase sem emoção

Vozes delicadas se chocando 

Em grossos muros

Altos 

Altos

E sua face evanescendo na memória 

Fugindo do toque do meu olhar 

Sorrindo para o horizonte longínquo

Mas foi hoje

Mas também foi há mil anos

Tudo como no mesmo sonho confuso 

Que nunca termina

Que nunca começa 

É só a calmaria antes da tempestade 

É só o tempo roubando as cores da realidade

É só a chuva lavando as fantasias 

Derretendo as máscaras de papel

Mostrando os rostos impecáveis

As almas deformadas 

É só a chuva purificando o ar e adoçando a atmosfera 

Perfumando, desacelerado

Cantando 

Enquanto no labirinto da mente 

Os fantasmas se descobrem

Deixam seus velhos lençóis pelo chão 

Suas correntes sobre os móveis danificados 

E vão caminhando enquanto tocam a minha mão 

Ao menos eles

Entrelaçando nossos dedos

Em direção a uma saída daqui.

3 de out. de 2022

 


Pessoas melhores viveram tempos piores, e se hoje ainda temos direito ao grito, e gritamos, é por esses que gritaram antes, até perderem a voz. Gritamos hoje por aqueles que tiveram suas vozes usurpadas, caladas, pela fome, pelo descaso, pelas políticas de morte alimentadas por veias contaminadas de ódio e escuridão.

Gritamos, até que nossa voz seja temida. 

E choramos, como não? 

Por desespero, por alívio, por esperança. 

Mas choramos abraçados, como irmãos.

Porque não estamos presos em uma sala de espelhos, onde só nosso reflexo existe por todos os lados. 

Vemos o outro. 

Somos o outro;

Ainda que o outro tantas vezes não nos veja, não nos seja;

Ainda que o outro, tendo a mesa farta, jamais sinta algo sobre quem nem a mesa mais tem. 

Agora as ruas estão silenciosas... Talvez pelo prelúdio da batalha, talvez pelo cansaço das almas, talvez por um luto que parece nunca ter fim.

E assim chegamos ao mês da Doce Mãe... Olhando o horizonte como pequenas crianças perdidas, como filhos confusos presos em vórtices de sentimentos.

Em meio a isso o perfume das manacás atravessa as grades e hostilidades, apascenta os corações em busca de trégua. 

Esperamos então... Mas não afiando espadas e alinhando escudos, esperamos de mãos dadas, novamente, como irmãos; em prece, os que têm fé, com a bandeira da cor do sangue em riste, os que têm coragem, com o peito aberto, os que têm Amor.

24 de set. de 2022

 

Alguma palavra certo tanto mais doce, mais bonita quem sabe, vai insistindo em romper a grossa camada de nuvens que camufla a luz. Do céu, da alma. 

A primavera nascera assim, com as ruas e avenidas envoltas em bruma suave, com alguns corações mergulhados em dolorosos adeuses, com a chuva caindo fininha e uma canção falando sobre o fim do inverno. 

Ainda são tempos extremamente esquisitos, como disse a poetisa. Mas já podemos vislumbrar alguns sorrisos, aqui ou acolá. E como são lindos, todos eles... Podemos falar até em, quem sabe, meu Deus, dias mais felizes. Talvez fosse sobre isso que os ipês cantavam através das suas últimas florações ao longo do caminho.

Pois que ainda que seja tão simples ou tão estranha, tão bela ou tão amendrontadora, isso que flui pelas vozes, pelos abraços novamente possíveis, pelos sonhos guardados e esquecidos nas noites profundas, isso, não tenho dúvida, é vida.

19 de set. de 2022

 


Há essa atmosfera, e sua radiante e limpa claridade quase líquida escorrendo pelos espaços abertos e galhos ressequidos dos ipês com as suas últimas flores do ano. 

Falam-me em pecado, mas essa luz tamanha me faz lembrar das palavras do jovem mestre ao pregar que o amor cobriria uma multidão deles. 

E há o vento fresco, puro, e o mundo que ainda não se cansou de girar, renovando de novas cores a vida que às vezes vai empalidecendo aos poucos, desbotando...

Talvez sejam dias como este, de céu lavado por chuvas mansas e inesperadas, em que pelas esquinas olhares gentis ainda se cruzam e pelos jardins frondosas flores vermelhas desabrocham cada vez mais e mais, que anunciem uma espécie de prelúdio do fim de tempos sombrios. 

Há tanto que a palavra Esperança não é usada, talvez por medo de banalizar o sagrado e fazer dela o mesmo que fora feito do Amor, uma imensa e delicada utopia, algo tão belo e vasto e sem razão de existir.

Contudo, como dito, há o céu, a luz, o vento, o olhar, as nuvens filiformes que são como pinceladas leves decorando o firmamento, então o peito se aquece por um momento e parece valer a pena acreditar, talvez, em tempos mais bonitos.

25 de ago. de 2022

 



Nada faria questão de mais alguns versos pobres sobre um breve sonho em que dedos se entrelaçavam. 

É passado o tempo em que suaves ancantos assim colocavam asas de cera em um coração que sempre tentou voar perto demais do sol. 

Mas havia uma canção bem composta que permaneceu após aquele rápido aconchego se dissolver na luz da manhã como neblina... Ela ainda toca.

Mas é agosto, e mesmo que não tão belos quanto outrora, os ipês florescem, e o vento faz chover flores bem amarelas pelo pátio onde as crianças correm e brincam, alheias à estiagem brava que acerca as almas humanas. 

E eu sei que tudo sempre esteve apenas na minha cabeça, todos os reinos e pesadelos, anjos e vilões. Cada personagem vestiu o figurino que lhe fiz, alguns cobertos de safiras e pérolas, outros de trapos e estilhaços. Agora enfim respiro aliviado, estamos todos perdoados. 

E já não faz mais sentido ainda viver como se o melhor estivesse para acontecer, como se houvesse um milagre esperando na próxima esquina, na próxima ilusão. O melhor e mais belo é este agora, simples assim como é, com seus sabores escassos, com seus perfumes não muito raros, com sua paz delicada, porque isso é a vida, não é? 

Os ciclos... O crescimento, a despedida, a regeneração, junto dessa voz cada vez mais tímida, mas que não se cala, não se cala. 


13 de jul. de 2022



 Talvez por uma tarde o mundo gire sem solavancos;

...os meninos empinem suas pipas, o sol se ponha exalando uma luz macia, as mangueiras floresçam e o seu perfume adocique esses ares que por tanto tempo foram duros e pesados...

Talvez por uma tarde, uma canção volte a fazer desaguar o olhar e o reflexo que se mostra não assuste, mas conforte;

...o tempo se esqueça da própria crueldade em não passar, ou passar célere demais...

E mesmo sem você aqui, todas as coisas se sustentem em pé, em seus lugares;

Mesmo sem todo seu heroísmo e luminescência, o céu não desabe e a claridade do sol ainda embeleze a copa das árvores e o caminho por onde as crianças correm e riem de si mesmas. 

Resta coração para mais alguns versos, mesmo que chamuscados, fragilizados e feridos pelo calor da realidade, 

Porque há alguma coisa sagrada e bela que flui oculta no âmago dos ossos da vida, e é isso que o olhar, essas palavras, os passos e essa fé ainda não desistiu de buscar.

9 de jul. de 2022



 É o mesmo sol daqueles tempos se pondo lá fora. 

O mesmo sol dos dias em que era mais fácil sorrir,

O mesmo sol dos dias em que era difícil não chorar.

E é essa luz calma que penetra pelas paredes rachadas da alma e ainda faz brilhar suas preciosidades cada vez mais escassas. 

O passar rastejante dos minutos e a velocidade imensamente incalculável com que os anos voam,

A visão embaçada das cores, o assovio cortante e incessante do silêncio,

Os nomes se apagando todos na minha mente,

O medo, enfim materializado bem diante de mim;

Tudo girando a chave que tranca a porta de um quarto em muita desordem, sem perfume, sem calor, onde a luz não entra.

Mas inicia-se uma canção...

A melodia daqueles dias de céus de quartzo e águas de esmeralda,

De sabores, aromas, sorrisos,

E eu vejo os jovens correndo pelas ruas, ainda com seus sonhos intactos,

E chuvisca nesses meus olhos ainda tão vivos,

Ainda caçadores do que é Belo,

Eu vejo o jardim mais que resistindo, florindo, 

E eu me lembro daquelas antigas palavras gentis:

"Você também ainda vai florescer de novo.

Na verdade, você já floresce."

25 de jun. de 2022

Gravidade

 


Havia um último resquício de recordação,

Recordação do trajeto, da busca, do caminho. 

Um último resquício guardado, amassado,

Quase esquecido, no fundo da pequena caixa de papelão,

Uma caixa de memórias. 

Um bilhete, uma passagem,

De onde eu voltaria, 

Metaforicamente,

Apenas quase dez anos depois. 

Não era amor, não apenas,

Era mais. 

Era o céu, o ipê florescendo em fevereiro,

Era toda a imensa distância,

As estrelas cadentes e ascendentes,

Era toda uma trilha sonora,

As novas roseiras plantadas no jardim,

Era toda a esperança e poesia do mundo;

Era o último amor:

Que agora, 

Nada é.

Então para junto dos discos,

Do suéter perfumado,

Do único anel de prata usado,

Vão os pequenos pedacidos de papel,

Dissolvendo-se também no mar ácido do tempo. 

Mais um último adeus que floresce no gigantesco jardim de adeuses, 

Mais um último poema,

Mais um último minuto silêncio,

Pelo que tanto prometeu ser.

Cessa enfim o poder da sua gravidade...

Nada entre mim e o espaço longo, infinito.

Mas eu me lembro de um último gesto de doçura 

Onde me dizia que meu amago é que luzia

Quando eu acredita apenas refletir claridades distantes. 

Agora vejo, é pouco, mas a cada desabrochar, a cada passo afrente,

O coração pulsa em luzes sutis...

Mesmo agora, principalmente agora,

Em que você não mais faz morada nele.

16 de jun. de 2022

 


Nada, sequer uma fotografia...

Qualquer imagem.

O som da voz perdeu-se também,

Dissolvido por entre milhares de ruídos,

Ruídos emitidos pelas promessas partidas,

Quebradas, em cacos, ferindo-se entre si,

Afiadas pelo passar das horas,

Dos dias, dos meses, dos anos.

E eu, como um fantasma faminto, consumindo

Cada boa memória, 

Cada mínimo fragmento.

Dissolvendo tudo o que foi vivido em palavras fracas, frágeis, empobrecidas,

Retorcendo a minha alma com cada vez mais força,

Em busca do resto de alguma vida,

Em busca do resto de alguma nobreza. 

Então, o gotejar amargo de mais algum sentimento que repousava como um lago intocável surgia...

Mais algumas linhas ilegíveis,

Mais algum canto por todos inaudível.

Mas no mesmo sonho assombrado

Onde você destruía toda minha fortaleza,

Apenas por existir,

Onde você vagava displicente 

Por meus tantos vazios,

No mesmo sonho repleto de um profundo adeus,

Um abraço morno...

Um sorriso brando...

A luz do sol nascente escorrendo das janelas,

Inundando a cama, os lençóis. 

Um nome já esquecido,

Eu, digno do amor outra vez,

Talvez,

Ainda mais, até. 

4 de jun. de 2022

 


Eram e talvez, 

Em alguns momentos inocentes,

Ainda sejam

As palavras

Os raios luminosos a derreter

A gélida e grossa

Camada de realidade

Que cobre a superfície 

Acima de mim.

Eram e talvez ainda sejam elas,

Apenas elas,

A desnudar a doçura de alguma canção 

Por entre as noites em que o silêncio,

Falso e estranho,

Corta lentamente a pele da lucidez.

São elas, ainda, talvez,

A adornar de memórias preciosas,

Não vividas,

A envolver de aromas raros,

Imaginados,

Alguma ilusão sutil que suavemente sorri

Enquanto vaga vagarosamente

Por essas ruas que já foram tão minhas.

São elas, eu sei, 

Unicamente elas,

A persistir e ficar

Junto de mim,

Das minhas mãos,

Removendo pedras,

Plantando roseiras,

Como disse a mestra.

São elas, eu sinto, que renascerão,

Ainda que menos vivas, 

Ainda que mais esquecíveis,

Enquanto algo de Belo sobreviver no coração.

22 de mai. de 2022

 



Há ainda em alguns inícios de tarde, embora o azul magnânimo e clemente do céu, essa chuva branda de delicados fractais dos tempos em que o tempo não passava. 

Esse suave perfume da jabuticabeira em flor, a memória dos velhos papéis de carta, a luz do sol se diluindo por entre as árvores, resgatam dos porões trancados da memória o aroma do primeiro amor, o aroma dos primeiros sonhos que exalavam vida por todos os poros... E eu sempre achava que recebia demais, que já era muito meu amor ser tolerado, e não celebrado; eu sempre achava que as flores floresciam pelo acaso, e não pelas minhas mãos que se feriram na terra ao semeá-las, não pela minha fé em cultivá-las mesmo quando era inverno e todas as cores pareciam tão cansadas.

São apenas os primeiros passos nessa estrada infinita...

São os primeiros minutos de claridade após a madruga... 

Tudo o que amei ainda está aqui, repousando agora bela e inofensivamente, 

Mas é o que eu finalmente amo que verdadeiramente me guia,

O coração

12 de mai. de 2022

 

O sol nasceu já era meio dia. 

E esse calor tardio é o mais próximo de um abraço em dias, ou séculos. 

E isso é apenas meu dedo traçando mensagens em códigos tolos sobre a areia, segundos antes de ondas suaves tudo levar. 

E é apenas uma forma de novamente urrar de lábios selados, de rogar socorro a fantasmas frios e acariciar as cicatrizes das batalhas que venci, ou que perdi, não recordo bem.

Ainda é cedo, dizem, mas eu já ouço a cantiga do tempo. . . 

Um ruído ininterrupto que quase se sobrepõe às melodias adocicadas dos tempos dourados. 

Ainda é cedo, insistem, mas ao redor daquelas memórias ternas; os joelhos na estrada de terra, um anel prateado, dois sorrisos; já há uma bruma escura e densa de esquecimento. 

Todas as vozes que sobraram confundem verdades e mentiras em seus discursos intermitentes. 

É um cenário intrigante... a realidade:

Às vezes eufórico, quase sempre cansativo. 

Esses fragmentos de encanto, esses sopros de esperança, essas pequenas belezas que desabrocham como flores azuis, são o alimento pouco nutritivo para o espírito que já degustou nuances do paraíso. 

Mas então veja: as ondas já vêm para levar meus rabiscos novamente. 

Antes delas chegarem eu vejo o vento começar a desfolhar as árvores e com o olhar pausado em um horizonte próximo demais eu tenho a certeza de que hoje pertenço a outro lugar. Mesmo que não outro lugar físico, mas outro estado de alma, outro destino. 

Então o oceano das horas engole meus devaneios, dissolve as lamúrias e cores junto ao seu sal infinito... 

Um dia eu entenderei que, na verdade, o oceano sou eu.

7 de mai. de 2022

 

Aquela mensagem desbotada no alto do caminhão, a quem passava:

"Acredite!";

O homem correndo com um botão de rosa nas mãos, com um pequeno laço esvoaçante ao vento,

Um gesto de doçura, 

Talvez para uma mãe cansada

Ou para um amor delicado;

Um olhar ligeiramente mais profundo, 

Meu nome em finos lábios gentis...

Talvez fosse Deus,

Do Seu Misterioso e Santificado jeito,

Provando aos meus sentidos,

Ao meu espírito,

Que a brutalidade dos tempos que passaram,

E que insistem em permanecer,

Não pôde dizimar todas as pequenas esperanças,

Os pequenos milagres,

E estes brotam pelas frestas dos dias amenos,

E florescem aos poucos,

Colorindo, 

Aquecendo,

Salvando...

E meu coração deixa de se esconder,

Por um momento,

Deixa de doer,

Por um instante,

E me responde:

"Sou grande, 

E permaneço forte ainda."

27 de abr. de 2022

 

Talvez outra vez não fosse o fim do mundo afinal...

Apenas uma canção de falsa beleza 

Instiga a procurar pelo murmúrio de fantasmas ancestrais 

Em busca de algo ainda assombrar,

Em busca de algo ainda sentir.


Só que já não doem os olhares frios,

Congelados.

Já não corta o silêncio que nunca mais será pleno...


Você não vê, 

Mas o sol se põe como se alvorecesse,

E no caminho que se estende até o horizonte 

Quase não restam escombros

Ou culpas 

Ou saudades. 


Talvez isso seja Esperança.


Se muito amei, meus muitos pecados foram perdoados,

Disse o Mestre,

Então que fluam como água pura 

Os tão desejados novos dias

E lavem meus pés cansados

De tanto caminhar errado.


Há o que ainda amar alí adiante,

Há...

Há o que ainda florescer. 

23 de abr. de 2022

 



Ainda que sem existir,

Em algum sonho,

Você vem ao encontro,

E ilumina,

O que de Belo insiste em não partir.


E meu coração cansado

Reflete esse lume vago 

Que se dissolve sobre o solo faminto 

Por onde caminham displicentes utopias,

Antigos adeuses e sonhos sem voz.


Quando desperto então há um resquício de calor

Por entre os dedos feridos por cavar a terra quase estéril...

E não que seja o bastante,

Mas esse pequeno sopro de pureza

Ainda é capaz de me fazer sorrir.

17 de abr. de 2022

¹⁶/⁰⁴/²²

 


Não sobrou nenhum ouro naquelas águas em que tanto mergulhamos 

Para dourar recém-memórias com uma falsa aura de eternidade. 

Quando o que sobra dos velhos poderosos feitiços é uma brisa suave que sopra palavras esquecíveis,

A chuva deságua em seguida,

Inclemente, 

Lavando o encanto restante das ruas e telhados. 

Mas como já dito, há sempre um mas. 

E há algo de sagrado na luz morna que vaza por entre nuvens pesadas que quase não se movem no céu...

Ainda me lembro de quando no décimo sétimo outono o grande sonho ergueu-se feito uma muralha no horizonte, uma cordilheira repleta de promessas e penhascos nos quais tantas vezes me precipitei antes de conhecer a paisagem deslumbrante que o cume me daria. 

Então chega a véspera do trigésimo quinto outono... E já não me seduz mais a imensidão gélida acima, tão acima de mim. 

Eu contorno, procuro por pontes, riachos, flores pelos caminhos e janelas. Caminho com mansidão e esperança.

Eu me curo nas águas dos meus olhos e sorrio pelo esforço dos jardins em se preparem para mais um inverno que logo virá.

E vejo que já não há um destino, mas apenas esse caminhar, enfim suave, sereno...

O caminhar que é, finalmente, o bastante.

21 de mar. de 2022

 


Manhã de outono

Talvez a primeira ou a segunda,

E apenas um pequeno verso,

Pobre,

Quase bonito,

Com alguma ternura: 

Hoje o tempo não me dói.


E os que aqui me falam dos dias melhores

Ou dos dias piores

Não me convencem. 

Pois basta que o tempo hoje não me doa,

Basta,

Por ora,

O canto adocicado do vento que sopra.

8 de mar. de 2022

 




Os últimos resquícios do gosto do que pareceu ser amor parte dos lábios

Algo do pouco que ainda havia

Se dissolve no cruzar das mesmas quase eternas esquinas 

No silêncio que reina intocável 

Nas ruas de olhares frios 

Mesmo depois de tantas palavras

Tantas

Tantas palavras

Sentenças intermináveis

Páginas em centenas

Promessas eternas

Preces 

Mas apenas despedidas então 

As lembranças dos adeuses

O eu não posso mais 

O quem sabe em outro momento 

E é mais do que solidão isso tudo nessa sala em desordem 

Com sapatos falsificados jogados pelos tapetes velhos

Essas memórias tão fracas que desapareceriam a um toque

É mais do que ausência isso que decora um cenário em decadência 

Do que antes fora um jardim exuberante

Mas que eu conservo as auras como se de algo valesse 

Porque é tudo o que parece restar

E observo esses contornos como se abrigassem algo real

E eu entoo breves canções de tempos menos densos

E apago as luzes 

Outra vez

Apago as luzes.

3 de mar. de 2022

 


Semear palavras pelo sol

Mais uma última vez

Para que o silêncio insalubre 

Não preencha de fantasmas os últimos cômodos 

Onde ainda danço a nossa velha canção 

Que você não sabia ser também sua.


Falar dos sonhos a ouvidos distantes

Mais uma última vez

Porque após a chuva era tão bonito 

A bonança descendo aos campos 

Retraindo minhas pupilas já cansadas 

De tempos de tão pouca beleza.


Caminhar pelos mesmos caminhos idênticos 

Mais uma última vez 

Na tola esperança de algum encanto pelas esquinas esquecidas

Algum olhar mais profundo 

Antes de tudo passar

Antes de tudo se tornar apenas noite e passado.

15 de fev. de 2022

 


Talvez ainda seja cedo para lembrar daquele breve instante em que era possível observar o céu profundamente azul que se abria no olho do furacão...

São imensuráveis as vezes em que o mundo acabou e renasceu em poucas dezenas de meses, e talvez esse nó que não sai da garganta há semanas seja o pranto contido, o pranto pelas horas de desespero e pelas horas de alívio, o pranto pelas vezes em que a fé partiu com a promessa de não mais voltar, mas que junto à luz do sol, bateu na minha porta na manhã seguinte.

Naquele breve instante com tudo girando ao meu redor eu podia ver meu reflexo nos estilhaços que feriam minha pele, e eu tentava dar nomes e culpados a cada parte, a cada ilusão partida, quando na verdade era tudo apenas eu tentando não ser capaz de dar a cura a mim mesmo. 

Mas quando os céus oferecerem outra vez mergulhos em calmaria, eu sonharei novamente com alguma voz, com algum entrelaçar de dedos. Substituirei os velhos poemas tristes por canções dóceis, plantarei novas flores que trarão novas cores ao cansado jardim. 

E, por fim, dos tantos estilhaços que ainda voam desgovernados, perigosos, quem sabe... farei o belo caminho a seguir em direção a dias que não irão mais nos ferir tanto.

14 de fev. de 2022



 É estranho como as imagens do passado foram perdendo suas cores, desbotando. E é estranho como aquele tanto de vida, que talvez nem fosse muito, mas emocionava, agora são apenas essas fotografias congeladas, que nada deveriam significar, mas que em tardes assim, bonitas até, com a luz escorrendo pelas paredes amarelas, ainda podem ferir, como adagas enferrujadas. 

São só tolos fantasmas que rodopiam junto ao vento calmo, eu sei... E de alguma forma absurda que sou incapaz de assimilar, tudo pode estar certo, em seu lugar. 

Daqui de baixo eu não posso ver que talvez os últimos tempos tenham trazido algumas lições que não viriam de outra forma, de uma forma mais gentil, e tudo bem ser difícil enxergar no reflexo difuso algo um pouco maior e um pouco mais belo do que aquilo que se mostra. 

Quem sabe tudo isso seja só a vida acontecendo...

A luz se dissolve agora para lentamente partir... E talvez minha imagem também seja como que um fantasma rodopiando pelos ventos da tarde de alguém. 

Não é só o meu coração a ser de carne,

Não é só o meu coração a sangrar,

Não é só o meu jardim a desabrochar flores que são incapazes de se tornarem  frutos. 

As distâncias todas ainda me assustam, e quase todos os sonhos se perdem nessas lonjuras; em algumas noites ainda é preciso acender as luzes após pesadelos, e orar por proteção,

Mas de não longe minha mãe sorri e para amanhã o dia promete novas flores, ainda que estéreis, no jardim;

Hoje a cabeça encostará nos travesseiros sem grandes culpas,

Então os fantasmas, quase todos, adormecem feito a tarde que se finda.

Bebemos todos de uma doce trégua, e cantemos mais uma vez uma querida canção... 

Este sou eu tentando.

31 de jan. de 2022



 De não tão longe uma voz canta que tudo o que somos é apenas poeira ao vento... Uma voz que desliza pelas salas vazias e pelos corredores recém pintados de um amarelo vibrante, que destoa do cinza entristecido de quase todos os dias desse janeiro custoso de terminar.  

E eu olho esse céu que há dias não cessa seu pranto, apertando as mãos frias, sentindo o peito vazio de saudades ou promessas, mas preenchido por um receio, um temor, que rouba o encanto das águas que antes caíam absolvendo os pecados e interrompendo as batalhas.

Mas em todas as noites eu ainda rezo para anjos cujos nomes e faces eu desconheço, todas as noites eu flutuo como que livre em direção a um lar distante, um ninho, um colo. E eu posso sentir que por detrás dos reflexos tortuosos que chegam aos meus olhos ébrios, alguém, verdadeiramente enfim, me sorri.