16 de mar. de 2024

Cinzas

 


Infinitas palavras desde então 

Sem começo, sem fim

Eternas 

Construindo-se metaforicamente sobre si mesmas 

Torres imensas 

Como árvores gigantescas 

Mortas 

Esparramadas em um deserto onde nada mais floresce 

E essas singulares miragens entoam canções confusas

Ora sobre o que se passou 

Ora sobre que se sonhou ser 

Ora sobre o que se perdeu para sempre 

Você então cruza o céu como uma deslumbrante ave em chamas 

Alto, muito alto 

Inalcançável, já que é apenas uma memória 

Que se apaga, e morre

E renasce das cinzas que sempre guardo 

E sempre guardarei 

Até que se perde no horizonte em que brilha uma alvorada petrificada 

Que nunca ilumina por completo 

E eu já não choro 

Eu já não clamo

Já não espero 

Pois que o vento sopra e para longe me esparrama 

Feito que memórias em cinzas me tornei também.

Há uma tempestade

 


Há uma tempestade nem sempre bela em seu coração 

E suas águas que nutrem os jasmins 

Também levam do solo as flores mais frágeis 

As promessas recém plantadas.


Há uma tempestade ainda em seu coração 

E seus vendavais destroçam os vitrais 

Assustam os anjos 

Avançam cômodos adentro.


Há uma tempestade... em seu coração 

Mas os relâmpagos insistentes clareiam pequenas joias pelo chão 

Apontam o caminho pelo escuro 

Te impelem a uma oração.


Há uma tempestade... que é seu coração 

Que como o filho pródigo olha para trás

Olha para o caminho adornado de erros 

Clamando um sorriso, um beijo de absolvição.

11 de fev. de 2024

Em Teu caminho



Em alguns dias, Mestre, correrei em Tua direção;

Feliz, confiante, de braços abertos,

Sorrindo e cantando.

Em alguns dias, Mestre, caminharei em Tua direção;

Resignado, sóbrio, firme em meus passos,

Emocionado por ver-Te em meu horizonte.

Em alguns dias, Mestre, engatinharei em Tua direção, 

Feito uma criança frágil, titubeante, temerosa;

Embora convicto, plenamente, de estar em Teu caminho.

Em alguns dias... Mestre, estarei sem forças, cansado, com mãos e pés feridos;

Então, Mestre, eu rastejarei em Tua direção, 

Lentamente, com olhar envergonhado por minha fraqueza,

E não haverá em mim nada de Belo, além da pequena Luz do meu coração apontando o caminho...

E nestes dias, principalmente neles, saberei: qualquer que seja a velocidade, jamais deixarei de ir em Tua direção,

Pois és meu Caminho, 

És minha Verdade, 

És minha Vida. 



Rogava pela luz, e a luz aos poucos se fez 

Às vozes todas, às gargalhadas 

Uma resposta silenciosa 

Os ombros em riste 

Não o medo 

Não desta vez

É passado o tempo das sombras

E a alvorada arrebentará o horizonte em luzes magnânimas 

Fará-se o novo tempo acima do velho 

Fará-se boa nova pelos abismos do espírito 

E se impossível o voo

Que haja o caminhar 

Se impossível o caminhar 

Que rasteje-se caminho afrente 

Mas seguindo, seguindo 

Sem desvios, sem atalhos, sem dúvidas 

Até que se bata na sagrada porta

E ela se abra 

Deixando transparecer o primeiro dos novos dias.

24 de jan. de 2024

Prelúdio



Quando alguma noite de janeiro consegue ser amena 

O céu canta uma melodia ancestral 

Quase um lamento repleto de saudade

E também de esperança 

O vento traz um aroma de mirra 

E as nuvens repousam calmas e tem a cor de um âmbar pálido

E é como se a noite se rendesse junto a mim

Dobrasse seus joelhos em uma oração como as da infância 

Quando tudo era repleto de uma mágica beleza 

Sei que estou retornando...

Sei que são passos simplórios em direção ao que de valioso se perdeu 

Sei que chegará a alvorada em que outra voz se unirá à minha 

E luzes e canções se farão então por todos os cômodos da alma 

Ainda não é chegado o tempo 

Muitas pedras a remover 

Muitas roseiras a plantar 

Mas há por enquanto esta noite 

Um prelúdio do que seria a vida 

Se fosse um poema.

21 de jan. de 2024

Uma após outra




Ainda a remover pedras, uma após outra 

Sempre, sem cessar 

Enquanto remove, renasce, purifica 

Com uma canção sempre a tocar 

Certas ilusões não lhe vestem mais

Refaz teu reflexo, teu caminho 

E leve, enfim, sobrevoa os pecados deixados lentamente para trás 

Do alto, verá o que cresce e refloresce 

Sozinho, simples, completo 

Teus anjos não repousam longe, mas flutuam contigo

Em teu peito, uma chama ressuscita 

Pequena, morna, bonita 

Do alto, alguém cuida de ti, sonha contigo 

Acolhe tuas orações com carinho

Sem reinícios simbólicos desta vez 

A vida caminha para seu cume 

E quando lá chegar

Que veja paisagem deslumbrante, silenciosa, iluminada

E quando de lá partir que seja outro 

Melhor

Seja verdadeiramente

Quem de fato é.

Desavisados

 


Em algum momento é irresistível desejar ser novamente criança e ter a mãe a dizer vai daqui para ali, ou faço isso ou faça aquilo

Sem que tenhamos que pensar muito pois que alguém havera pensado antes com muita precisão e sabedoria 

Para tudo se há horas e organizações

Para tudo há muita segurança 

E ainda que muito falte, nada falta

E ainda que muito doa, nada dói 

Então crescemos desavisados de que precisamos crescer

E começa-se a pensar na vida, na morte, nas consequências todas 

E há tantos números a serem calculados, tantas portas a serem trancadas, tantas janelas a serem fechadas que quase já não vemos mais o céu, não vemos mais a imensidão 

Crescemos e tudo se torna diminuto, razoável, necessário

E mesmo comentando pequeno atos de rebeldia, como manter as luzes de natal por todo o ano, deitar no chão para olhar as nuvens, escrever poemas bobos

Temos medo... 

Medo de que não sejamos mais nem uma memória para aquilo que já amamos 

Medo dos despertadores que só esperam a hora certa para nos banhar em realidade fria

Medo do tempo... 

Que não existe, e ainda assim, troca de lugar todas as coisas... algumas, para sempre.

11 de jan. de 2024

O tempo

 


Há essa voz em minha mente que sempre se repete:

'O tempo é um animal tão mutante!'

Uma hora se é menino, noutra se tem o coração partido.

E a gente passa meia existência perdendo pedaços, 

Pequenos caquinhos que vão caindo pelo caminho,

E passa outra metade voltando e recolhendo essas partes, tentando formar uma alma completa, curada.

E então a vida salta espalhafatosa, gira uma dezena de vezes e cai de pé esperando aplausos,

E o aplauso não vem. 

Alguns olhares são de soslaio, insípidos,

Todo mundo esperando aplauso também. 

Mas o tempo, sim, o tempo. 

O tempo na verdade não existe...

Tudo começou com um homem inventando um relógio 

E outros homens comprando esses relógios até a coisa sair do controle 

Mas o tempo mesmo, não existe,

É uma abstração feita para definir outras abstrações,

Como as saudades, as pessoas, os sonhos.

A gente coloca tudo dentro de um cronômetro e o quanto ela viver ali, mostra sua importância. 

E nem tudo obedece à regra...

Tem coisa que foge pelas frestas e permanece, 

Quietinha ao nosso lado,

Durando para sempre;

Tem coisa que não importa o quanto dure, dura pouco demais;

Tem coisa que ainda bem chegou,

E sempre esteve aqui. 


8 de jan. de 2024

Foi há dez anos




Foi há dez anos 

Foi ontem 

E só na memória restam provas de tais épocas 

Profundas...

Como um oceano misterioso 

Onde repousam tesouros para sempre perdidos.

Em algumas tardes o céu se pinta do mesmo azul que habitava em seu olhar 

E há então um sopro morno e mágico de saudade 

Nada foi tão puro desde então

E nada será 

Pois por vezes eu volto de longas peregrinações até esse santuário 

E ainda repousa imóvel no altar meu ex-voto

Meu coração de pedras e flores 

Inerte, mas tão cheio de vida 

E eu tiro minhas sandálias pois adentro em solo sagrado 

Tiro minhas roupas pois já não causam vergonha as cicatrizes

Tiro as máscaras que camuflam meus pecados...

E o que resta, se não é belo, 

Ao menos tem um brilho verdadeiro.

Olho com doçura para essas paredes, para meu reflexo nos espelhos, para o sentimento materializado diante de mim

Uma brisa fresca sopra pelas janelas, 

Um ipê flori lá fora, uma rosa desabrocha, uma borboleta salta pelo ar

E eu começo a enteder, década depois, porque nunca parti por completo 

Aquele sentimento que já não pode mais possuir um nome

Trouxe à tona a mais bela parte de mim. 


31 de dez. de 2023

01/01/2024




Escreve -se, talvez, para represar uma magia que insiste em escapar por entre os dedos, por entre o ordinário da vida;

Sem se dar conta muitas vezes que é esse fluir, é esse viver comum que gera todo o encanto. 

Escrevendo se desafia o tempo: agora mesmo, há dez anos, estamos eu e meu pai ali fora, recém chegados a esse lar, esperando pelos clarões no céu, ouvindo uma canção sobre o futuro levar o passado embora...

Só que o futuro nada leva.

E repito de novo e outra vez, como disse o poeta, que em mim nada é extinto ou esquecido. 

Tudo permanece aqui, vivo, quente, pulsando. 

Mas não permanece o mesmo, e eu gostaria às vezes de ir para longe e observar o tanto que a alma cresceu. 

Em meio às turbulências tantas, as flores plantadas, os amores perdidos, os abraços dados, os sorrisos recebidos, chegamos a uma lágrima humilde, de uma gratidão tão, tão pura, escorrendo morna e lenta...

Do pouco que sei, de algo estou certo, o sinônimo de vida é recomeço.

27 de dez. de 2023

26/12/23




 Não se abrirão ainda portas aos silêncios

Talvez minhas palavras e suas tentativas 

Maculem a sagrada e bela poesia dos grandes arautos 

Talvez meus sentimentos não sejam os mais puros e leves 

E assim materializados em linhas 

Nenhuma claridade acrescentem às noites escuras de tantos 

Mas há no espírito suave melodia que não se cala 

Uma fé menina que se não cresce, ao menos nunca perde a formosura 

Há memórias tão vivas

Chegadas, despedidas 

Primeiros abraços

Últimos adeuses 

Tudo compondo de notas delicadas essa canção sem fim

Foram sim, tantas, as flores perdidas pelos caminhos 

Os passos em desequilíbrio beirando a pecados

E o medo nunca deixou de ser incômoda companhia 

Mas o olhar fita firme o horizonte com sua inexplicável claridade

Pelos redemoinhos eu vejo esperanças rodopiarem 

E por vezes eu sei que minhas preces alcançam esferas celestes 

Ainda piscam as luzinhas de natal 

Ainda escorrem córregos mornos dos olhos 

Ainda estou aqui.

25/12/23



 Há dois milênios, o santíssimo Sim.

Então das maiores e mais puras esferas

O detentor da Verdade olhou com profunda misericórdia esses minúsculos irmãos 

E até eles veio

E caminhou por caminhos e corações áridos 

Semeando, semeando 

Limpando, curando

E amou de tal forma 

Que sua voz ainda ecoa 

E para sempre irá ecoar

Pelas ruas agora, claridade tantas 

Canções por seu doce nome 

O abraço de irmãos 

A mesa posta 

Uma profunda oração

Amigo, mestre, irmão

Que vejas aqui neste peito 

Aquela humilde manjedoura que O acolheu

E que aqui também em mim

A Tua Luz nasça.

11/12/23



 Havia um fragmento do infinito naquela avenida 

Porque no deleite de um instante sem fim

Nada faltava

Tudo bastava

Pois que havia o vento 

A claridade

As árvores dançando impossivelmente

E no imenso céu acima 

Nuvens enfileiradas

Como que pintadas por mãos generosas 

Em largas pinceladas 

Agora tudo isso adormece a um passo do esquecimento 

Mas pela janela sopra uma brisa doce 

Luzes piscam calmamente 

E eu sinto que algo do Sagrado está aqui agora

A me envolver como em um abraço amigo

Delicado

Ansiado

E mais um corte se fecha 

E mais uma cura floresce 

A vida entoa suave melodia

A noite extrai suspiros esperançosos 

Cessam os estrondos 

Repousemos agora

Não há nada a temer.

09/12/23

 


Ao abrir a porta

Um aroma com qualquer coisa de saudade 

De passado 

Do que se perdeu 

Ao abrir o peito 

Uma claridade macia 

Pequenas esperanças em cintilância

E o espírito

Com as mãos sempre sujas 

Não só de pecados 

Mas de enterrar sementes nos lamaçais 

Esperando pelos lírios

Pela floração

Pela absolvição 

Enfim

Os espelhos refletem pouco 

Menos do que nada 

Daquilo que foi tanto

Que foi mais que tudo

E que passou 

Agora as janelas estão abertas 

A brisa da noite adentra suave 

E move as páginas sagradas sobre a mesa 

Acaricia meus apelos 

E pelos tantos passos em falso

Eu mais uma vez me concedo perdão.

07/12/23



 Há pela atmosfera uma claridade perfumada.

Dias dóceis, talvez.

Uma prece, uma canção, uma súplica.

O gentil silêncio.

As pracinhas repletas das luzes de natal; 

O coração cansado da espera, mas batendo tão bonito.

E a esperança de que talvez minha voz possa ainda transpassar os telhados, as copas das árvores, fios e edifícios, 

E alcançar o céu...

Este céu de nuvens como as da infância,  

Jorrando uma luz magnânima,

E deixando tudo abaixo tão magnífico.

Fere, sim, esse não bastar, 

Essa linha de chegada que nunca chega, 

Esse cume jamais alcançado,

Mas é dezembro e a vida prepara seu simbólico reinício.

O espírito ainda se renova aos sopros suaves da brisa,

O espírito ainda reflete o que vislumbra de sagrado, 

Como se não fosse tarde demais.

01/12/23



 Uma pequena ode ao sono profundo das palavras,

Às, novamente, últimas sementes lançadas ao solo árido,

Ao preço insano pago pelos sonhos,

Aos últimos sentimentos.

Na alma, sei, há vastidão inclemente,

Mas faz-se luz, muita luz, tanto que pouco se vê.

O que ainda há para ser dito, rogado?

Uma prece profunda, uma viagem demorada rumo a um longo adeus.

E essas palavras, sempre elas, a trazer e a levar,

A trazer e a levar...

Como ondas calmas e fortes.

E eu temo em silêncio.

Temo que sem palavras e sem sentimentos 

Acabem-se os poemas de amor,

E ninguém sinta falta.

Pois que coisas maiores se perderam pelas dobras do tempo,

E os poemas todos, de amor ou não, 

Adormecem esquecidos, adornando velhas estantes,

Restando apenas um despretensioso devaneio por uma tarde muito ensolarada,

Restando apenas versos de um velho poeta que eterniza memórias ainda mais velhas,

que assim como essas,

A ninguém interessam mais.

06/11/23



 São apenas outra vez murmúrios sem propósito e sem destino pela tarde de farta luz. 

Pois que em alguns fragmentos de tempo há beleza e a alma exclama:

'Por este instante, sou completamente feliz!'

Sei da proximidade do silêncio, uma calmaria estranha anuncia sua chegada. 

É passado o tempo da floração dos ipês, da saudade, do amor. 

Aquelas memórias imensas, clarões sublimes na noite eterna, jazem agora como fotografias quase sem cor de uma outra vida, de uma outra história, que não a minha. 

Por ora, então, há a tarde,

Há borboletas brancas beijando pequenas flores roxas, 

Há um último botão no jasmineiro,

Há sua falta.

25/10/23




Já não temo a ausência da sagrada voz;

Poucos são seus ecos a adentrar meu peito.

Já não temo a raridade com que sonhos emitem doces cânticos;

Sim,

As guerras não cessam... 

Não por aqui, não por enquanto.

Mas a chuva ainda lava a atmosfera nos finais de outubro 

E nas trincheiras cavadas a sangue e suor na realidade, 

Há repouso.

Eu pendo minha cabeça ao escorrer de poucas lágrimas,

Cheias de sentimentos, carentes de razão,

E vejo agora um limpo firmamento aos poucos brilhar,

Vejo as estrelas emergirem da escuridão, em calmaria e silêncio.

Adormeço... 

No torpor das horas vislumbro imagens utópicas bailando, bailando,

Como se a vida, a carne, o tempo, não doessem.

Então um rosto, um sorriso, um abraço 

Um entrelaçar de dedos...

E já não estou só.

04/10/23

 


Um leve desaguar no dia de Francisco 

O nobre obreiro de Assis

Francisco que também é como foi chamado meu pai 

Resiliente, digno

Francisco, como o Velho Rio que leva vida ao sertão 

E eu aqui, tão pequeno 

Ouço o cântico dessa chuva 

Revolvendo as brasas dessa minha fé ainda tão pequena 

Mas ainda assim, já tão bonita 

Usando pequenas pedras para compor poemas simplórios 

Plantando sementes humildes 

Na esperança da floração 

Na esperança do perfume do jasmineiro

Orando... 

Pai, mesmo quando eu for digno de Lhe ver a face

Mesmo quando nenhuma mácula restar no meu espírito 

Mesmo quando minha alma não for nada além de Luz 

Mesmo quando o tempo, o espaço e a carne não fizerem mais sentido 

Ainda precisarei da Tua Misericórdia da mesma forma como preciso hoje 

Hoje, que pouco sou além de falhas e sombras

Ainda rogarei por Teu Amor

Como hoje,

Que ainda sou a menor das Tuas criaturas.

19/09/23



 Torce-se a alma por alguma emoção 

Para que goteje 

Quem sabe 

Alguma luz 

Algum perfume 

Algum propósito 

Agosto passou 

Mas é sempre agosto 

É sempre uma estiagem brava 

Infindável 

Um vento seco

Forte e poeirento 

Um céu desbotado 

Ainda assim

Como pediu a mestra 

Remove-se pedras 

Planta-se roseiras 

Tenta-se fazer da vida mesquinha 

Um poema.

31/08/23

 


Agosto despede-se com vasto temporal 

Relâmpagos fartos 

Orações interrompidas e retomadas

A água pura lavando as janelas brancas

Surge então 

A já memória 

Do coração acelerado 

Mesmo que já não tão jovem 

E uma súplica humilde 

Silenciosa: 

Quem sabe

Meu Deus 

Minha vontade não seja também 

Tua vontade 

Agosto que já tanto levou

Talvez só parta dessa vez

Depois de algo belo trazer 

É alta madrugada...

Mas aqui ainda protegido da alvorada 

Não há o que impeça o sonhar.

27/08/23


 Até mesmo agosto com toda sua eternidade começava a chegar a um fim

Deixando as avenidas forradas com as flores de ipês brancos e amarelos

De longe, o tempo assusta, imenso e selvagem 

De perto é uma dama requintada, de perfume doce e gestos nobres 

E ainda sento ao seu lado

Peço que me conte algumas histórias sobre o que foi e sobre o que virá

E gosto quando ela fala, quando sorri, quando aponta o caminho 

E temo quando ela silencia e fita o horizonte com um olhar imóvel

Já não cobro tudo o que de mim ela levou 

Mas agradeço por tudo o que me trouxe 

Repito a ela 

Como disse o poeta

Em mim

Nada é extinto ou esquecido 

Não por completo 

E ela suspira com um sorriso complacente

Não sou o pior dos seus filhos, talvez 

Eu penso 

Ainda espero com paciência o florescer anual das orquídeas 

Ainda tiro o pó com delicadeza de todas as lembranças que apenas repousam nas prateleiras da memória

Ainda acordo em algumas noites pedindo perdão pelos meus tantos pecados 

E eu a temo... E como 

Seu passar lento, gotejante

Levou sem esforço impérios, nações, eras 

Que se dirá de mim...

Um cisco ao vento 

Não mais que isso

Mas hoje sento ao seu lado sem dor 

Em uma oração silenciosa 

Ainda é agosto 

Ainda há esperança 

E chove 

O jardim floresce 

Talvez eu também.

12/08/23

 


É a mesma velha ventania pelas ruas vazias de agosto 

As velhas folhas acertando meu rosto e suas primeiras marcas que não irão mais partir 

Em uma fração de segundo 

Um aroma também ancestral 

De eras repletas de uma poesia quase inocente 

Mas eu caminho sobre meu próprio caminho 

Enquanto as luzes da cidade começam a brilhar 

E vou só 

Ainda que não seja tão tarde

Eu vou só 

E leve 

Então asas me brotam dos ombros 

Ao sentir que me torno este agosto

Este agora 

Ao sentir que me torno as luzes da cidade 

Os carros que vem e vão

O perfume das mangueiras e eucaliptos em flor 

O céu escuro abraçado por nuvens pesadas 

E por um instante 

Por uma minúscula trégua do tempo 

Tudo é perfeito 

Pois não há medo.

08/08/23

 


Não há mais o que precise ser dito

Talvez, nunca houve

Mas temo que um dia o cessar das palavras traga um silêncio profundo, permanente

Que a interrupção desses cânticos, quase murmúrios

Quebre um encanto que já quase jaz sem poder 

Então, insisto

Pois que sopram ainda os ventos de agosto

Levando e trazendo memórias desbotadas como esse azul do céu

O velho ipê range enquanto se prepara para mais um epitáfio 

Os campos lentamente adormecem aguardando a primavera

E os tempos de brava estiagem deixaram marcas profundas

E é sim bem pouca a mágica que escorre de tudo

Só que a vida ainda sopra forte lá fora

Levando e trazendo esperanças de cores fortes como o céu noturno 

Por isso, insisto...

20 de jul. de 2023

 



Ainda pode-se ouvir o sino da velha igreja de Nossa Senhora

Ao longe, abafado 

Um som que já é quase mais uma memória que um fato

Minutos antes 

O silêncio cortante 

Com poucas palavras afiadas desfilando diante dos olhos 

E se tudo desabar, meu Deus? 

O coração aflito, apertado

Então o badalar distante...

Como que Deus dizendo 

Estou aqui

Sempre estive aqui 

E aqui continuarei 

Assim, o silêncio torna-se colo

O escuro da noite, um afago

A brisa quase fria, um sopro perfumado de misericórdia.

8 de jul. de 2023

 


Guiava-se às vezes ainda pelo brilho de estrelas mortas 

Visto que quando a noite é repleta de uma escuridão dura

Quase tangível 

Mesmo que falsas

As tais quase únicas claridades 

Eram os únicos sinais a apontar o caminho 

E por tanto olhar o firmamento 

Na busca infinda de alguma luz ilusória

Mal notava o próprio peito um tanto mais quente

Um tanto mais cintilante 

Entoando canções ancestrais 

Imaculadas 

E por tanto olhar o firmamento 

Na busca infinda por anjos imóveis em seus pedestais 

Mal notava o próprio espírito um tanto mais puro

Um tanto mais leve 

Alçando voos modestos

Mas com suas próprias asas.

27 de jun. de 2023



Em certos dias acordava com um medo

De que o frágil sentido das coisas se perdesse 

De que

De repente

Nada mais estivesse lá 

Em seus lugares nas estantes

Nas rodovias 

Nos corpos e corações 

Um medo quase sem razão

Ou não 

Feito quando era menino 

E temia dormir achando que o dia não nasceria 

Que ao despertar ainda seria noite 

Noite

Noite 

Para sempre noite

Como se o dia se esquecesse de voltar

E por algumas vezes aconteceu 

Os objetos sumiram das estantes 

Os carros não encontraram as rodovias 

O coração se partira

Por algumas vezes 

A noite foi longa 

Tão longa que quase não se viu claridade alguma ao amanhecer 

Um dia estranho

Com uma luz suja

Cansada 

Ali só por obrigação

E não houve quem voltasse ou quem chegasse 

Quem dissesse 

Estou aqui 

Não 

Só o silêncio de sempre 

Um sopro afiado e frio de realidade 

Então se escrevia 

Porque ela estava certa 

Escrevia-se sim para desabrochar 

De um modo ou de outro 

Para que não se murche e se caia

Como os botões daquela roseira na janela da juventude 

Escrevia-se para dourar de eternidade o efêmero 

Para acender alguma luz perene 

Para que ainda se sonhe

Que algum dia você estará aqui.

 


Preencher de vida 

De saudade

De memória 

Cada canto

Cada canção 

Cada hora 

Tornar bela a noite preta

Profunda 

Para que a alvorada se achegue 

E se encante 

Com os ressignificados

Com os renascimentos 

Fertilizar de passado as terras estéreis 

Esperar que cresça

Floresça

Frutifique

Cem por um

Cem por um

Até que os céus se abram 

E a força do futuro 

Derrube as barragens

E o peito se lave

E dos olhos 

Jorre enfim

Amor.

25 de jun. de 2023

 


A cada dia 

Um pequeno passo 

Sementes nas rachaduras 

Em breve a florescer 

Mais um cômodo resignificado

O perfume

A poesia

A vida

A ressurgir 

Até que o Belo faça enfim morada 

E abra-se as portas da alma em convite 

Sê bem-vindo à minha alvorada 

Ao meu espírito reconectado 

Desfragmentado 

Sê bem-vindo ao meu Lar 

Ao abrigo humilde de sonhos descomunais

Sê bem-vindo a Mim 

Enfim

Renascido.

8 de jun. de 2023


 O mundo ruíra-se por centenas de milhares de vezes 

E reconstruíra-se quase completamente outro em seguida 

Sob os mesmos alicerces 

Então é estranho que por fora tudo pareça igual 

Enquanto no âmago tudo esteja diferente 

Pela primeira vez o novo adeus não fez mais sentido 

Pela primeira vez o que era próximo parecia extremamente distante 

E as palavras tornaram-se relâmpagos 

Pequenos e rápidos clarões na noite que sempre volta a reinar soberana em algum momento 

E por todos os tempos esperava um sinal que não vinha 

Alguma resposta para as perguntas que já não são mais feitas 

Mas esperava 

Esperava enquanto a luz do dia não chega definitivamente 

Enquanto do peito ouve ecos 

Preces e murmúrios 

Exaustivas ânsias 

Enquanto o espírito conserta rachaduras e trincos que sempre voltam a aparecer

E agora em que finalmente se faz algum silêncio lembro-me da indagação:

Qual a diferença entre a poesia e o poema?

A poesia é o presente 

O poema é o passado 

Sonhando com o futuro.