27 de fev. de 2017

Alma



É tanta alma,
Tamanha alma,
Que me escorre pelos olhos
Um oceano ainda mais profundo,
Ainda mais pacífico.

E se não posso ir tão alto
Com essas frágeis asas de palha,
Em risco de feito Ícaro
Ser lançado sem piedade ao solo,
Posso mergulhar tão bela e livremente.

Um dia, desvestido da carne efêmera,
Desvestido dos tantos indelicados temores;
O universo será visto em toda sua vastidão
Com olhos lavados,
Puros e leves, finalmente.

Um dia, a alma prisioneira
Estará outra vez dissolvida
Nos perfumes e encantos,
Como no início,
Quando não havia passado ou futuro.

Um dia, depois de tanta espera,
Tanta luta;
Um dia, depois que o tempo adormecer,
Nos reencontraremos
E seremos lindamente azuis sob o luar.



Em breve, "Multiverso".

12 de fev. de 2017

Carolina


Como tá o dia, Dona Carolina?
E se chove, mulher, como vai ser?
O barraco tá limpo, as crianças, alimentadas.
Descansa um tiquinho,
Deita esse fardo no chão,
Vai coser poesia.

A gente aqui continua tudo marginal.
A sociedade vai correndo rio acima,
E a gente daqui só observa com nossa sina nas costas.
Desde quando a água cai para baixo é parecido:
A gente parece não ter vez, não.

Que vida dura, Dona Carolina!
É tanta humilhação por um pedaço de pão!
Será que um dia a coisa reverte?
Pelo andar dessa carroça, sei não...
Mas a gente resiste, tá no nosso sangue.
A gente beija a lona, mas levanta e pulso cerrado.

Deus lhe guarde aí no céu, Dona Carolina.
Certeza que ele fez pra senhora 
Aquele vestido bonito de noite estrelada.
Por aqui, sua palavra continua forte e viva
Dando voz e coragem
À vida de tantas outras Carolinas.


Singela homenagem a Carolina Maria de Jesus. 
Mulher, brasileira, mãe, guerreira.


9 de fev. de 2017

Mar negro



Dia após dia: fuga!
Braçadas exaustas
Neste infinito mar negro.

Nossa carne ferida,
Nosso sangue que flui,
A fome que ruge aos nossos pés.

Devoram-nos aos pedaços,
Sem pudor ou misericórdia.
Contra as bestas dos abismos,
Nada podemos.

Uma vastidão sem lei,
Sem decência,
Sem justiça,
Sem escrúpulo.

Aves carnicentas pairam pacientes.
Logo,
De nós,
Um banquete de restos.

Frágeis iscas de um ciclo corrupto,
Fétido, desgovernado.
Marginais atirados às feras,
Saciando a voracidade dos demônios.


4 de fev. de 2017

Sentimentos colateais


Dançando sobre a superfície,
Cansativa tempestade.
Rugidos entediantes,
Ameaças ilegítimas.
Sal ao ar de luzes azuladas.

Na profundeza, silêncio.
Sóbria calmaria
Repousando sob pressão.
Claridades artificiais,
Escuridões legítimas.

Pelas ondas, à deriva,
Sentimentos colaterais.
Memórias de um outro tempo,
Um outro espaço,
Outro eu.

Nos abismos, o desprendimento.
O esquecimento da necessidade,
Da ânsia por calor;
Da vontade de navegar
Em outros idênticos mares.

3 de fev. de 2017

Finite


O deserto, tamanho deserto,
Pequeno demais para almas
Tão fartas.
Pequeno demais para tantos pecados,
Para tanto desejo sujo,
Para tanta vergonha,
Para tanto silêncio.

Falta espaço, falta céu, falta sol.
É pouco, pouco demais.
Vá, e esconda suas pegadas,
Ante mesmo da dança
Das areias e dos ventos,
Esconda suas pegadas,
Leva tua memória daqui.

Devolva-me meu nada
Furtado por falsas vozes
Falsos toques,
Falsos olhares.
Não há falta, não há lar,
Ou dor ou amor:
Apenas o nada há.