24 de jan. de 2024

Prelúdio



Quando alguma noite de janeiro consegue ser amena 

O céu canta uma melodia ancestral 

Quase um lamento repleto de saudade

E também de esperança 

O vento traz um aroma de mirra 

E as nuvens repousam calmas e tem a cor de um âmbar pálido

E é como se a noite se rendesse junto a mim

Dobrasse seus joelhos em uma oração como as da infância 

Quando tudo era repleto de uma mágica beleza 

Sei que estou retornando...

Sei que são passos simplórios em direção ao que de valioso se perdeu 

Sei que chegará a alvorada em que outra voz se unirá à minha 

E luzes e canções se farão então por todos os cômodos da alma 

Ainda não é chegado o tempo 

Muitas pedras a remover 

Muitas roseiras a plantar 

Mas há por enquanto esta noite 

Um prelúdio do que seria a vida 

Se fosse um poema.

21 de jan. de 2024

Uma após outra




Ainda a remover pedras, uma após outra 

Sempre, sem cessar 

Enquanto remove, renasce, purifica 

Com uma canção sempre a tocar 

Certas ilusões não lhe vestem mais

Refaz teu reflexo, teu caminho 

E leve, enfim, sobrevoa os pecados deixados lentamente para trás 

Do alto, verá o que cresce e refloresce 

Sozinho, simples, completo 

Teus anjos não repousam longe, mas flutuam contigo

Em teu peito, uma chama ressuscita 

Pequena, morna, bonita 

Do alto, alguém cuida de ti, sonha contigo 

Acolhe tuas orações com carinho

Sem reinícios simbólicos desta vez 

A vida caminha para seu cume 

E quando lá chegar

Que veja paisagem deslumbrante, silenciosa, iluminada

E quando de lá partir que seja outro 

Melhor

Seja verdadeiramente

Quem de fato é.

Desavisados

 


Em algum momento é irresistível desejar ser novamente criança e ter a mãe a dizer vai daqui para ali, ou faço isso ou faça aquilo

Sem que tenhamos que pensar muito pois que alguém havera pensado antes com muita precisão e sabedoria 

Para tudo se há horas e organizações

Para tudo há muita segurança 

E ainda que muito falte, nada falta

E ainda que muito doa, nada dói 

Então crescemos desavisados de que precisamos crescer

E começa-se a pensar na vida, na morte, nas consequências todas 

E há tantos números a serem calculados, tantas portas a serem trancadas, tantas janelas a serem fechadas que quase já não vemos mais o céu, não vemos mais a imensidão 

Crescemos e tudo se torna diminuto, razoável, necessário

E mesmo comentando pequeno atos de rebeldia, como manter as luzes de natal por todo o ano, deitar no chão para olhar as nuvens, escrever poemas bobos

Temos medo... 

Medo de que não sejamos mais nem uma memória para aquilo que já amamos 

Medo dos despertadores que só esperam a hora certa para nos banhar em realidade fria

Medo do tempo... 

Que não existe, e ainda assim, troca de lugar todas as coisas... algumas, para sempre.

11 de jan. de 2024

O tempo

 


Há essa voz em minha mente que sempre se repete:

'O tempo é um animal tão mutante!'

Uma hora se é menino, noutra se tem o coração partido.

E a gente passa meia existência perdendo pedaços, 

Pequenos caquinhos que vão caindo pelo caminho,

E passa outra metade voltando e recolhendo essas partes, tentando formar uma alma completa, curada.

E então a vida salta espalhafatosa, gira uma dezena de vezes e cai de pé esperando aplausos,

E o aplauso não vem. 

Alguns olhares são de soslaio, insípidos,

Todo mundo esperando aplauso também. 

Mas o tempo, sim, o tempo. 

O tempo na verdade não existe...

Tudo começou com um homem inventando um relógio 

E outros homens comprando esses relógios até a coisa sair do controle 

Mas o tempo mesmo, não existe,

É uma abstração feita para definir outras abstrações,

Como as saudades, as pessoas, os sonhos.

A gente coloca tudo dentro de um cronômetro e o quanto ela viver ali, mostra sua importância. 

E nem tudo obedece à regra...

Tem coisa que foge pelas frestas e permanece, 

Quietinha ao nosso lado,

Durando para sempre;

Tem coisa que não importa o quanto dure, dura pouco demais;

Tem coisa que ainda bem chegou,

E sempre esteve aqui. 


8 de jan. de 2024

Foi há dez anos




Foi há dez anos 

Foi ontem 

E só na memória restam provas de tais épocas 

Profundas...

Como um oceano misterioso 

Onde repousam tesouros para sempre perdidos.

Em algumas tardes o céu se pinta do mesmo azul que habitava em seu olhar 

E há então um sopro morno e mágico de saudade 

Nada foi tão puro desde então

E nada será 

Pois por vezes eu volto de longas peregrinações até esse santuário 

E ainda repousa imóvel no altar meu ex-voto

Meu coração de pedras e flores 

Inerte, mas tão cheio de vida 

E eu tiro minhas sandálias pois adentro em solo sagrado 

Tiro minhas roupas pois já não causam vergonha as cicatrizes

Tiro as máscaras que camuflam meus pecados...

E o que resta, se não é belo, 

Ao menos tem um brilho verdadeiro.

Olho com doçura para essas paredes, para meu reflexo nos espelhos, para o sentimento materializado diante de mim

Uma brisa fresca sopra pelas janelas, 

Um ipê flori lá fora, uma rosa desabrocha, uma borboleta salta pelo ar

E eu começo a enteder, década depois, porque nunca parti por completo 

Aquele sentimento que já não pode mais possuir um nome

Trouxe à tona a mais bela parte de mim.