30 de abr. de 2023



Quando voltava a mim 

Eu entendia que a vida não era feita no desassossego

Mas nesse tecer delicado das horas e sentimentos 

Fio a fio 

Amarrando como que construindo 

E aí a gente olha pela janela com o olhar cansado 

Com o coração encolhidinho

Só que vê a esperança andando de bicicleta ali pela esquina 

De joelhos ralados

Cabelo desgrenhado

Sorriso meio amarelado

Doidinha a esperança 

Mas uma menina ainda 

Depois de tanto tempo 

Uma menina ainda 

E a gente chora ao mesmo tempo que sorri 

Quando ela acena 

Lá de longe

Toda faceira 

Porque a vida 

Meu amigo 

Dói na carne e no osso da gente 

A vida dói pra frente e pra traz 

Dói assim como se a gente fosse de ferro 

Só que a gente não é

Mas é bonita a danada 

Tão jeitosa 

Que a gente acaba por se apaixonar por ela 

De novo e de novo

E quer dela mais um bocado

Mais um tantinho 

Mais um gole 

E ela dá

Dá um céu limpo e bonito desse

Dá uma lembrança formosa de uma última dança 

Dá uma estradinha por entre um jardim 

Dá inspiração 

Pra mais uns versinhos simplórios.

28 de abr. de 2023

Kintsugi

 


A alma

Como uma rara porcelana

Partida novamente em cacos pelo chão 

As mãos então ferindo-se na coleta dos pequenos preciosos pedaços 

Tão pequenos e afiados 

Mais uma vez 

É preciso pacientemente recolocar cada parte 

Juntar as peças

Retomar a caminhada 

Mas exaustas

As mãos tremem 

Exitam

Recuam

Um anjo fala-me então sobre a fé

E as montanhas movidas com seu simples sopro 

E as mãos seguram firme novamente

Insistem

Persistem 

Mas noto a falta de algo precioso para que se juntem tantas partes

Outro anjo fala-me então sobre o amor

E sobre sua poderosa capacidade de juntar o que está quebrado 

E como um fio de ouro 

O Amor cola cada fragmento partido

E aos poucos vejo formar-se o mosaico da alma

Distante de sua pura e intocada forma primordial 

Mas tão mais valiosa que outrora 

Por último falo eu sobre a esperança 

E a alma refeita sorri 

E eu vejo o mais belo e verdadeiro sorriso

Aquele que resiste

Mesmo nas noites de escuridão mais profunda 

E eu vejo o mais belo e sincero sorriso

Ainda que com todas suas imperfeições.

27 de abr. de 2023

 




Feito dito na canção

Você era como um amanhecer

Uma tão aguardada alvorada 

Eu era como uma chuva da madrugada 

Um desaguar manso e contínuo

 

Naquele momento

Eu contemplava a vida

Você a vivia

E as proximidades tornaram-se menores que as distâncias 

Quando já não se pôde perceber

Que a chuva que sempre caía,

Junto à luz inebriante do sol,

Fariam florescer na terra devastada do peito 

Um jardim de milagres 


São estranhos todos esses tempos 

Em que jogamos fora o que há de sagrado 

Diante de encontrar-se nele alguma imperfeição

O esculpir, o curar, o salvar, o cuidar

Parecem custar tão mais 

Que simplesmente

Virar a página 


E serão estes os últimos versos antes do silêncio 

Não que se calará o coração 

Mas cessarão as palavras

Para que não se macule a dor 

Para que não se faça dela algo menos bonito 

Para que não se reprise ininterruptamente

O mesmo dolorido adeus.

 


Há também algo de belo nos dias em que a luz se recusa a nascer 

Lembro-me dos teus olhos tão vivos 

Cheios de verdade e despedida 

Das mãos estendidas 

Do sorriso límpido

Das mais novas páginas sendo escritas

Formando outro doce triste capítulo 

E não pudemos caminhar de mãos dadas pela chuva 

Não pudemos...

Mas houveram centenas de pequenos momentos sagrados 

Pequenos segundos cristalizados em canções que agora tocam sem parar 

Minhas canções tristes que você tanto não gostava

Por não sentir nelas a dor tão bonita que eu sentia 

Agora os sinais estão fechados

É momento de breve espera 

E sei que logo chove 

Há de ser limpa a atmosfera de densas esperanças 

Que escorrerão pelos telhados e calçadas 

E por nossas ruas que ainda se cruzam 

Enquanto levam para longe os passos que deixei enquanto te buscava 

O tempo dirá, disse a mim... 

Mas eu começo tão bem a voz do tempo 

E ela sempre ocoa para cada vez mais longe 

Cada vez mais para o nunca mais.

Prisão das flores

 


Volta, assim, à prisão do teu quase belo jardim,

Enquanto lá fora o mundo resplandece em vida.

Volta, assim, teu olhar ao solitário longo caminho,

E segue...

Caminha, lento andarilho, 

Ignora outra vez a voz rouca, 

Cansada, 

Disso que leva pesando no peito. 

Acalenta a nova dor,

A nova dúvida, 

A velha certeza: 

Para ti, só o tempo de companheiro. 

E mesmo ele,

Se esvai.

Sinais da estrada

 


Os sinais pela estrada dizem que ainda estamos distantes de casa 

Velhas memórias e velhas feridas

Que não partem

Nunca partem

Também 

Os pés cansados em sapatos ruins reclamam do caminho infindo 

Só o coração ainda canta

Uma melodia fraquinha, delicada 

Repleta de notas de uma esperança quase boba

Mas a noite que se achega após a tempestade não deixa de ser bonita e perfumada 

E já não há pressa 

Há tempo de observar nuvens esparsas onde talvez ainda repouse algum anjo em justo sono 

Há tempo de admirar um ou outro jardim que resiste a florescer

Quem sabe dizer ao certo se são passados os tempos insanos 

Já que nas almas pelo trajeto vejo tantas máculas

Tantos adeuses 

Tantas lágrimas?

Quem sabe dizer ao certo quanto sobrou de nós? 

As respostas todas pairam distantes

Como a luz do poente que se rende à madrugada próxima 

Por um instante eu absorvo então a paz de um santo silêncio enquanto sigo

Lentamente

Sem parar

Em minha própria direção.

23 de abr. de 2023




Eu te observei abrindo aquele portão 

Depois de tantos anos 

De tantas vidas que só você viveu 

De tantas batalhas que só você perdeu e venceu 

E te vi novamente de olhos cheios de esperanças 

Quase forte o bastante para ignorar

Todas as tantas vezes

Que iguais a essa vez

Foram proferidas palavras encantadas 

Feitiços sutis dissolvidos em pequenos gestos que 

Como que por mágica 

Sempre deixam de existir 

E caminhou então pela rua escura 

Abaixo de uma chuva leve

Ignorando os alarmes 

Ignorando as canções tristes que já começavam a tocar na sua mente

Ao ponto que 

Em um instante de sonho 

Ousou um salto olhando para o abismo repleto de belas cores e doces promessas 

Mas instantes antes da precipitação

Olhou uma última vez o horizonte 

E as cantigas fascinantes vindas do abismo começaram a cessar 

Como sempre

Sempre

Cessam

Olhou então o horizonte...

E toda uma vastidão de vida ainda se esparramava por todos os lados 

E viu o próprio reflexo pelas nuvens e campos 

Viu estilhaços da própria alma bailando pela atmosfera 

Sentiu o perfume dos tempos que ainda virão 

E pensou que talvez 

Talvez 

Não fosse necessária uma nova queda 

Uma nova memória partida 

Para entender que 

Mesmo diante de toda sua imperfeição

Mesmo diante de todos seus pecados

Antes de qualquer salto 

Sentimentos verdadeiros colocariam asas em suas costas 

E não espinhos abaixo dos seus pés

21 de abr. de 2023

Canto de Ossanha



Um dia então você saiu a navegar

E jamais retornou 

Jamais voltou outra vez

Seu olhar para a costa 

E era agosto 

E foi então sempre agosto desde então

O mesmo inverno 

O mesmo ex-voto sendo esculpido 

O órgão nunca curado

O mesmo tempo inverso 

Correndo como que para trás 

À tua busca 

A mesma discreta loucura contida 

Revivida hora após hora

Enquanto

O vento salgado do porto corta a pele

Fere os olhos 

Racha os lábios finos 

E nada no horizonte 

Nada 

Nunca mais 

Apenas a linha de pálido azul 

Sem vida 

Tão contrária ao seu magnífico azul 

Repleto de promessas e utopias 

Nunca mais 

Ditas ou a mim oferecidas

Mas seu canto 

Canto de Ossanha

Entoando peito adentro

Por dias

Meses

Anos

Eternamente 

Quando o coração é incapaz de se jogar novamente

E crer novamente 

Porque nenhum abismo será profundo o bastante 

Será belo o bastante 

Já que ainda me lembro 

Tão bem e dolorosamente 

Do breve mergulho 

Na vastidão incomparável da sua alma. 




20 de abr. de 2023

Ainda sobre a mais bela dor

 


Quantas partes sobraram ainda para cortar 

Serrar 

Moldar 

Polir

Esculpir

Tirar

Para que se caiba no abrigo cada vez menor 

Mais abafado 

Sufocante

Mal iluminado?

No escuro que antecede a alvorada 

É difícil decifrar o que sobrou para diminuir 

Esquecer

Superar

Deixar 

Já que pelo que clama a alma

Paira distante 

Dissolvido no azul dolorido dos céus de outono 

E tudo isso 

Porque ainda trago a recordação de alguma outra estação 

Quando pensávamos que estávamos perto de casa 

Para logo descobrir um outro caminho tão longo em frente 

A ser desbravado a pés descalços 

E tudo isso

Porque ainda trago a recordação de um sentimento profundo

Intraduzível 

Pouco antes da conversão na mais bela dor

Pouco depois do sopro gélido da realidade. 


17 de abr. de 2023

 


Injustas palavras se precipitando em uma queda perigosa 

Seus olhos de céu profundo novamente em ronda 

Embora nunca mais se recordem da minha face 

Do meu pranto 

Do nosso adeus

E eu aceitei você para sempre dentro de mim 

Mas há noites em que você viola a jaula sagrada da alma 

E quase alcança novamente o posto que sempre será seu 

Até o fim dos últimos dias 

E eu me lembrei pela última vez 

Que ainda te amo. 



Uma prece

Uma promessa 

Deus meu 

Que não tarde a alvorada 

A luz então por entre as nuvens 

O calor na pele 

Talvez um sinal 

Estou aqui 

E sua voz continua digna de ser ouvida

E uma canção sobre coisas amadas

E partidas 

E o canto suave do tecelão 

Saltitando na jabuticabeira em flor 

E os primeiros sinais de uma tão aguardada ressurreição 

De novo e de novo 

Palavras e palavras 

A pílula sagrada para a alma cansada 

Um lágrima 

E outra 

Pois que a beleza da vida às vezes dói

Às vezes fere 

Misericórdia então 

Pai

Misericórdia e perdão pelos tantos descaminhos 

Pelo coração já não tão puro

Pela fé pequenina 

Mas firme 

Firme.

 


Não que houvesse ainda algum espaço para a ilusão

Não que houvesse ainda algum espaço para a esperança

Mas houve uma flor de vermelho intenso desabrochando 

Houve uma canção sobre um carro veloz cortando a escuridão 

Enquanto em raro momento de uma face bela da vida

Passos lentos em uma valsa calma

E uma chuva leve caindo após a longa estiagem 

E um rio morno de promessas tão bonitas

Cruzando um sertão cansado e de pouca vida

Um porto não distante de onde partir e para onde chegar 

Nos poucos momentos em que não se navega pelas águas bravas do presente 

Que tão

Tão lentamente vai se tornando passado 

Então novamente outono 

E tantas súplicas pela renovação 

E os erros e falhas e perdas 

E novas chances 

Então novamente outono 

E a fé na frutificação.

7 de abr. de 2023

Sê comigo

 


Os anos que diminuíram distâncias 

E aproximaram corações

Também me trouxeram até aqui,

Na manhã de um dia santo,

Resumindo todas as longas e elaboradas orações em:

Sê comigo.

Pois que aquilo que há de santificado 

Não mais paira longe no firmamento profundamente azul de outono,

Mas baila por cada célula da matéria, 

Cada fragmento de luz do espírito.

Em gratidão,

Em súplica,

Em alívio e em sonho:

Senhor, sê comigo.

Sê com esta pequena única lágrima 

Que desce morna e purificada 

Ante as primeiras tão belas luzes da alvorada,

Sê também com tudo o que veio 

Para logo partir,

Deixando apenas cicatrizes disformes,

Ruins,

Mas que hoje compõem os canteiros irregulares 

Onde cultivo as flores do meu jardim. 

Sê comigo, Mestre,

Para que eu caminhe em seus caminhos 

E leve comigo aquilo que será Amor.

Sê comigo,

Ainda que no dia da sua dor

Talvez fosse eu algum algoz 

Até entender 

Que sou menos,

Tão menos,

Que uma farpa da cruz que carregou nos ombros. 

2 de abr. de 2023

A fortaleza



Meu coração 

Como uma fortaleza fria 

Vasta 

Vazia 

O vento soprando pelos corredores 

A luz ínfima penetrando pelas frestas 

Pelas rachaduras 

Filhas do tempo 

Pelo chão

Restos de tempestade

De passado 

De cansaço 

De presente

Do futuro 

Que não alcanço 

Pelas paredes 

Retratos de dias ancestrais 

Sequelas 

O cheiro rude de memórias corroídas 

Mas então 

Você 

E a leveza

E a doçura

Vendo beleza em meio ao caos

Vendo grandeza na quase plena escuridão 

E assim suas mãos firmes 

Tateando 

Girando velhas chaves 

Destravando fechaduras

Abrindo uma janela 

Então uma porta 

E mais outra

Sorrindo

Cantando 

Anunciando 

Observando com olhos que brilham 

Algo de sagrado na construção antiga

Por todos esquecida 

Logo

Um sopro de vida 

Ao âmago partido 

Congelado 

Que lentamente se aquece 

E promete enfim

Relembrar-se da vida

E

Alvorecer uma outra vez.