15 de jan. de 2023

As quatro chaminés

 


Houve um tempo em que havia uma janela, e dessa janela eu via um campo onde crescia uma vegetação baixa que a cada estação se pintava de cores diferentes, cores aquelas que naqueles jovens dias de outrora pareciam mais vivas, mais intensas. E diante daquela janela eu me sentava, ora a preencher algumas linhas com versos singelos e rasos sobre as banalidades das horas e do coração, ora apenas observando o gotejar veloz com que a vida vai escorrendo por entre as frestas dos dedos da gente...

E olhando desse agora eu penso que talvez não fossem os dias a ter aquela aura de juventude, mas meu espírito, ainda tão pacífico e leve, ainda de solo fértil, a sentir e observar cada coisa através de um filtro, de uma lente de encanto. O mundo não teria perdido em alguns pares de estações que se passaram, seus sabores e seus aromas, mas estes, sorvidos naquelas primeiras vezes, eram como que mágicos.

Era então primavera...

Da minha janela eu vi quando os primeiros tijolos foram descarregados. A princípio eu não fazia ideia do que seria erguido ali naquele terreno em que meu olhar atravessava sem impedimentos até a linha do horizonte. 

Eu me lembro, tudo parecia fervilhar em vida de uma forma exuberante. Todas as coisas exalavam aromas juvenis, e o coração era leve, como se nunca tivessem se findado aqueles dias em que corríamos nas estradas de terra com os pés descalços.

O vento fresco atiçava a poeira das ruas e campos enquanto os homens descarregavam o alquebrado caminhão que já parecia cansado de sua longa sina de carregar pedras.

Vindas de não muito longe, velhas cantigas se misturavam ao som inquieto de centenas de pássaros nas horas finais da tarde. Naqueles tempos se o mundo doía, doía bem longe dali, porque tudo parecia estar no seu lugar, no lugar certo, com o mundo girando sem solavancos, de forma simples, ingênua e livre, desabrochando docilmente.

E em todas as tardes eu me sentava próximo à janela e via um grupo de homens sisudos erguendo aos poucos uma fábrica que parecia já nascer velha, e junto a ela, uma primeira chaminé que meus olhos acompanhavam crescer tijolo por tijolo, tomando a forma de um tronco marrom, esguio e alto, alto... Meu olhar se esticava junto dela até o firmamento com seu escarlate sol poente por detrás.

E foi assim, enquanto os homens trabalhavam, os pássaros faziam sua algazarra e as crianças brincavam com pequenos pedaços de imaginação, que eu senti, no acanhado jardim da alma, florescer o que tempos depois chamei de primeiro amor.

E aquilo que nasceu era como se trouxesse luz, mesmo nos dias de céus de cobalto, mesmo nos dias das flores esquecidas no asfalto, porque o jardim todo emanava uma claridade morna, macia, que não feria, como um lar, um porto, um abrigo. E enquanto os dias se passaram, enquanto eu observava aquela primeira chaminé lançar fumaças brancas e fartas ao céu, o primeiro amor florescido cobria velhos espinheiros de flores brancas e lilases. As fumaças claras, os dias felizes, os dedos entrelaçados eram o bastante para fazer acreditar que algum tipo de eternidade era permitida a seres tão pequenos e frágeis.

As ruas daquelas eras eram pavimentadas de sutis belezas adocicadas, havia uma poesia menina escorrendo pelos telhados quando chovia e certas canções eram como pequenos milagres preenchendo e curando todas as rachaduras tão doloridas da alma.

Era agora o nosso olhar a admirar a grande chaminé através da minha janela, e não apenas o meu. E daquelas tardes, daquele recém redivivo coração, brotavam versos, tolos e meigos.

 

Estar ao lado dele é como abrigar o nascer do sol no olhar. E não há nada que ainda seja visível ao redor além desse imenso círculo flamejante. Nada além dessas labaredas multicoloridas; chamas divinas.

E quando ele se vai é como o sol se pondo, e embora tão belo seja esse até logo, é tristonho ver a luz se escondendo atrás dos campos escuros. É triste porque sei que a noite o esconde de mim, e é belo, porque sei, o sol voltará a nascer numa manhã nem tão distante, buscando-o de volta para o meu lado.

Ah eu o amo tanto! Amo, porque ele sabe admirar o gotejar da chuva nas folhas, flores e espinhos da primavera.

Sabe que orações são muito mais gestos, sorrisos, olhares e toques do que meras palavras.

O amor é tanto, porque ele considerou-me um pássaro azul, voando de norte a sul e trazendo a esperança pra um mundo de criança...

Enquanto eu me via como um pássaro negro, acorrentado em meu galho seco, desflorado.

O amor é tanto porque me fez acreditar que talvez eu possua mesmo um par de asas bonitas, e isso me faz querer voar, voar, voar... Quem sabe até alcançar um Paraíso Secreto.

O amor é tanto porque ele sorri para estranhos, é gentil com crianças, gatos e pássaros. Olha para o céu quando eu digo: “Olha que cores bonitas!”

O amor é tanto porque quase acredito quando o ouço dizer que possuo uma alma grande. Pois olho para minhas mãos, braços e peito e passo a sentir que algo maior se comprime dentro dessa jaula de carne, sangue e ossos. Algo que em sua maior parte é bom, pacífico e paciente, mas que um dia, um belo e iluminado dia, precisará ser pleno e desvencilhado, precisará realmente nascer.

O amor é tanto porque aquele colo é meu abrigo perfeito diante dos temporais frios; suas mãos sabem tão acariciar meus cabelos enquanto as trovoadas vão diminuindo, diminuindo...

O amor é tanto porque ele reconhece minhas lágrimas de alegria e me presenteia com pétalas de jasmins e dança suavemente comigo no chuvisqueiro morno duma tarde de domingo...

 

Alguns poucos anos foram se diluindo junto aos ventos e a brisa suave daqueles tempos foi aos poucos se transformando em uma ventarola febril...

Descobri, pelo gotejar das horas, pela visão sempre idêntica da chaminé através da minha janela, a assustadora  fragilidade das muralhas daquele reino magnífico que lentamente, a realidade, a um toque inclemente, fez ruir.

Os dedos foram se desentrelaçando lentamente, as ligações ficaram mais curtas, do céu não caíam mais pequenos diamantes reluzentes, mas apenas água; água fria. Um dia então você se vestiu de preto, sorriu de forma triste, e dissemos um delicado adeus... e mais uma vez observando a imponente chaminé, que já não lança mais fumaças aos céus, dediquei-lhe últimos versos:

 

Ainda são aqueles mesmos céus de cobalto

Choramingando um garoar manso,

Insuficiente para que as memórias se dissolvam,

Ou para que um pranto não se achegue afinal.

 

É longa e silenciosa a inquebrável distância.

Da velha fortaleza, ruínas jazem,

Como miragens só alcançadas pela lembrança.

Tanto tempo... e ainda, algo de você.

 

Ah, se ao menos a chuva caísse poderosa mais uma vez

E escondesse o secular brilho das estrelas calmas

E a nossa canção fosse tocada novamente,

Pacificando a saudade, trazendo nossa antiga claridade.

 

Mas são apenas pequenos e delicados devaneios,

Frágeis e inofensivas esperanças,

Nunca mais revivíveis outra vez, nunca mais...

Longínquos fragmentos que a alma guarda do velho lar.

 

Eu podia sentir pelo cheiro do ar. Anunciava-se então nova estação. Quando o verão chegou o sol feroz feria as costas dos trabalhadores que descarregaram um ainda mais alquebrado caminhão que trazia os tijolos do que seria uma segunda chaminé, esta que era mais alta, mais bela e imponente que a primeira. Em uma velocidade absurda eu vi a imensa torre erguer-se a riscar o céu e fumegar quase tanto quanto a primeira que seu lado repousava como uma relíquia de tempos dourados. Também ao mesmo tempo em que ela se erguia, crescia com muita beleza e força no jardim recém refeito da alma, monumental arvoredo que desabrochava imensas e impossíveis flores amarelas. E tanto atirava aos céus seus galhos, feito a chaminé pouco além da minha janela, que eu quase me esqueci de tudo o que vi se dissolver pelo firmamento feito a fumaça... O toque, os planos, desejos, sonhos. Porque se antes aquilo que era eterno teve um fim, agora era tão certo que não haveria nada que criasse rachaduras no chão do paraíso enfim alcançado. Porque éramos um só, eu, o paraíso com todos seus anjos, ainda que o paraíso, seus anjos e até eu mesmo estivéssemos a centenas de distâncias. Pois que bastava um aceno, um toque, o gesto, e tudo se inundava de uma luz magnânima e maciça que cortava em pequenos pedaços todas as leis do tempo e do espaço...

 

Hoje eu vi a esperança, anjo meu.

Ela estava no galho florido do ipê.

É fevereiro, nenhum outro ipê está florindo.

Eles apenas florescem em meados de julho e agosto, quando o inverno é presente e eles temem a morte.

Diante da ameaça imposta pelo frio, pelo vento, pela aridez, eles dão o que poderia ser uma última explosão de vida, escrevem um epitáfio com flores de cores intensas, lançam suas sementes aos ventos numa tentativa de perpetuação.

Mas eles não morrem...

Os ventos frios, inclementes e secos, partem.

A morna primavera chega e os abraça como mãe carinhosa.

Eles ressurgem.

O verde volta aos galhos enegrecidos.

Volta a sombra onde brincam as crianças.

Como disse, é fevereiro, anjo meu.

Mas há um galho florido no ipê.

Um galho amarelo de flor.

É como uma esperança amadurecendo.

É uma resposta à última grande tempestade, eu sei.

A última tempestade que castigou o velho ipê.

Tirou suas folhas, derrubou tantos de seus galhos.

Sei que temeu a morte naqueles instantes, o ipê.

A vida tem dessas...

Ela nos ataca sem chance de defesa, tantas vezes.

Que fez o ipê para que a tempestade o ferisse?

Que fizemos nós para que fôssemos feridos?

Não sei, anjo meu.

Mas sei que nossa resposta, assim como a do ipê, será florescer.

Os galhos tirados pela tempestade,

as lágrimas que nos forem tiradas por outrem,

tudo isso será o prelúdio de frutos e sementes.

É entristecedor que antes da flor, antes do amor,

conheçamos o sofrer.

Dói profundamente, como profundamente estão as raízes do ipê, sequer imaginar que alguém lhe cause dor.

Mas hoje eu vi a esperança, meu amor...

E meus olhos quase não contiveram o rio abençoado de emoções que se formou.

Hoje eu vi a esperança...

e ela era amarela, era bela, como as flores do ipê.

 

Imensa como a nova chaminé era toda a distância, mas a ilusão tonava o mundo um mapa por onde traçava com os dedos uma linha reta, acima dos rios, pontes e cidades, e você então estava a algumas polegadas de mim. Eram aqueles, tempos sagrados. E tudo o que havia de impuro na alma cobria-se de uma santidade imaculável. Nenhum fantasma, nenhum pesadelo, nada, nada era mais forte que a intensidade do azul daqueles olhos.

E quando aqui não estava, eu observava sozinho o fumegar da chaminé que era minha nova companheira. E como uma criança que em tudo vê um amigo, a ela eu contava sobre as poucas, mas incríveis horas em que eu como que voava pelos céus, feito suas fumaças, segurando as mãos do que eu via como um anjo.

Mas eu ainda me lembro... foi na chegada de um pequeno lírio da paz ao jardim que eu observei através da minha janela não apenas as conhecidas chaminés, mas o fantasma do adeus...

 

Em meio às tempestades, com ventos ferozes

uivando nas árvores e cabos elétricos;

Em meio aos pesadelos em que eu, já velho,

me escondia embaixo da cama como qualquer criança;

Em meio às sementes que teimam em não germinar,

ele veio: um pequeno lírio da paz.

 

A coisa que pensei quando o coloquei naquele canto foi:

Quando o amor passar pela porta, será a primeira coisa que ele verá.

E talvez o coração do amor se alegre em ver aquela pequena beleza humilde.

Mas agora o observo com olhos marejados...

Talvez o amor não o veja.

 

Talvez apenas eu possa ver e dar importância àquelas flores.

E eu toco o lírio e cuido do lírio como se cuidasse um pouco do amor.

Ignorando as paredes sujas da minha alma,

Ignorando os estrondos que os fantasmas emitem de dentro dessas paredes,

Ignorando que a vida e o universo persistem além do sonho e do verso.

 

Mentimos tão bem quando dizemos não querer nada do amor.

Fingimos tão bem que não somos mais espíritos enlameados,

apenas rastejando rumo à angelitude.

Do amor queremos o amor.

Queremos que ele nos absorva em seu âmago,

Nos envolva como a terra envolve a semente.

 

Mas não mentimos quando dizemos que o amor é forte.

Forte como o Jardim que persiste vivo após a tempestade.

Forte como meu apreço pelo pequeno e doce lírio, que ali,

imóvel e silencioso, me obriga a entender como a esperança

e a vida

trabalham em seu tempo, e não no do meu coração.

 

Nunca haveria desde então adeus mais profundo e cortante, repleto de sequelas de onde brotaram flores enfeiadas, sem perfume, sem encanto. Depois das palavras de não posso mais, não pude mais também respirar, como poderia? Um dia após um dia, um ano após um ano, e reverberava pelos cantos novamente rachados da alma a ausência. O mundo era então um lugar completamente novo outra vez.

Após tudo, para tão pouca coisa acontecida, uma avalanche, um desabamento estrondoso de memórias, algumas de fato vividas, a maior parte sonhadas. Mas cada caco, cada estilhaço, cada escombro parecia valioso, e feria minhas mão tentando acaricia-los, acolhe-los, lapidá-los, e eu chorava sobre eles, na esperança de renascerem, de germinarem uma outra vez.

Então aconteceu o tempo, sutil, silencioso, longo como uma noite febril. E aquilo tudo foi se liquidificando, escorrendo, desfazendo; evanescendo no ar como a fumaça da chaminé sendo dissolvida pelas mornas brisas finais do verão. E um dia, quando aprendi alguma forma de não amar mais aquela dor, você passou. Como a escuridão da noite após o levante do sol, você passou. Como a febre que se cura...

Você passou.

 

Quando dei por mim, uma terceira chaminé se levantava ao lado das outras duas, agora pelo visto desativadas. Ela tinha algo de frágil e confuso em sua estrutura, mas como não entendo de chaminés supus que tudo estava dentro dos conformes, e que a velocidade com que era erguida fazia sentido por alguma urgência da fábrica.

 O mundo já havia girado tantas vezes que eu ainda tinha o estômago em ânsias diante da realidade. Não havia espaço para muitos questionamentos.

Era outono.

Eu havia deixado a segurança da minha janela em uma busca tola e perigosa por outras paisagens, por outras chaminés, quem sabe, além daquelas que via através da minha janela. 

Não parecia haver muito a se perder. E eu quase não via pequenas partes minha ficando às margens de cada caminho pavimentado de uma mistura caótica de loucura e lucidez pelo qual passei.

E foram muitas milhas, muitas estradas.

Então, um dia, eu estava perdido.

Perdido e com uma carga de inutilidades pontiagudas nas costas, gemas falsas, ouro de tolos, pesando em meus ombros, cansando meus pés que não conseguiam encontrar o caminho de volta pra casa.

Até que... até que eu vi um sinal de fumaça, sutil, delicado, distante, distante...

De onde eu estava eu via o topo da terceira chaminé, já em funcionamento, como que me chamando de volta ao lar. E eu ergui meu olhar e dei um passo, e mais um passo, e acreditei poder retornar à minha janela, ao meu jardim, a mim.

E eu cheguei, e eu me lembro que chegar foi com um abraço, um abraço forte, quente, aguardado.

Alguma coisa foi dita naqueles dias...

 

 Estava tudo em um santo repouso no fundo de uma alma envolta em penumbras.

Mesmo o que havia morrido, em partes, ainda vivia.

Eu sentia enquanto desconhecidas canções tentavam resgatar algum resquício do meu amor pela esperança.

Era uma tarde de domingo qualquer. Sem memórias. Sem expectativas. Apenas com o sol deitando suas luzes pelas frestas dos muros e dourando as flores simples do jardim.

Ainda assim era tanto, tão raro, tão precioso.

Vivo.

E os olhos quase jorravam, como naqueles dias espetaculares que eu tirava para perdoar a mim mesmo, para enxergar a minha própria divindade.

Eu me escondi das palavras porque tudo o que procurou fazer morada em meu coração foi a aridez bruta desses tempos insanos. Como poderia ser diferente?

Mas há, quem sabe, um descanso, um momento onde o olhar pode se dirigir para o céu em que outono renova as folhas.

Sejamos nós, talvez, pequenos oásis nesse imenso deserto de corações letárgicos, quase mortos.

Sejamos nós a brisa, o perfume sutil.

Isso não é pouco, não.

Sejamos nós os que, de alguma forma, ainda acreditam.

 

Dei a mim mesmo o direito de mais um mergulho, mais nascimento, mais uma absolvição. Talvez não fosse preciso, afinal, desistir.

E eu era quase bom nisso de transformar minúsculas fagulhas em um imenso fogaréu. Era quase bom em não desistir, em não sair correndo ao primeiro sinal de incêndio. As canções daquele outono falavam de juventude e beleza, e algumas migalhas de afeto enchiam meu peito de um combustível raro e delicioso.

Mas foi um outono extremamente frio aquele, e só eu procurava ali uma renovação que não viria. Na verdade, era eu que não via... que eu não tinha mais importância do que uma figura qualquer na paisagem. Um figurante despercebido em uma peça ruim e mal inacabada.

A realidade soprava forte, e eu ignorava.

Era noite quando notei as rachaduras. Noite de um vento tão gélido que parecia afiado. Pequenos estalos sucessivos foram ouvidos, seguidos por sons maiores, duros estrondos. A terceira chaminé logo além da minha janela ruía sobre si mesma. E eu apenas podia observar, triste e incrédulo. Mais tarde eu soube que, como aquele quase amor, fora construída sobre alicerce mal feito. Ela não resistira sobre si mesma.

 

Eu buscava velhas imagens para adornar novos poemas que no fundo eram em tudo também semelhantes aos velhos poemas.

Antigas palavras moldadas em novas linhas para esconder as mesmas antigas lições que não foram aprendidas e por isso se repetem.

De novo eu falaria da memória de um perfume que entrava pelas tantas brechas da sanidade para reacender chamas que nunca deveriam ter queimado, de novo eu falaria da ausência dos adeuses, dos pontos finais, da neblina que encobre e confunde todas as certezas.

De novo eu falaria do amor.

Ou do que penso ser o amor.

Ou do que gostaria que fosse amor,

mas nunca será.

Em 90 dias meu sistema estará limpo, como diz a canção de tons angustiantes e rasgados. 

90 dias é quanto tempo?

Muito pouco? Uma eternidade? O suficiente?

Não é tão grave, não deveria ser.

É só o cansaço colocando uma lente diante dos olhos e ampliando demais todas as coisas, dando-lhes uma importância que não devem possuir.

Ou é mais grave do que parece: o coração não podia mais com nenhum golpe depois dos bizarros últimos tempos.

Ainda me sinto vivo porque as palavras não cessaram. Como plaquetas, auxiliam no processo de coagulação para que os cortes fechem e cicatrizem.

No fundo ainda há um resquício de paixão pela dor por ser ela tudo o que restou de um futuro inexistente.

Mas resquícios acabam. E paixões terminam de queimar.

 

Três ruínas, três chaminés agora desativadas vistas em escombros além da minha janela. Eram tempos extremamente esquisitos quando chegou o inverno...

O mundo como que parara de girar e muitos além de mim observavam vastidões vazias além de suas janelas. Portas e portões trancados. Alguns diziam ser o fim dos tempos, outros falavam em punição, outros, enfim, sobre a necessidade de abrir portas e janelas, nas casas, nas almas.

 

A cidade naufragada em silêncio, em tanto silêncio, me faz sentir saudade do som daqueles versos que eram como vidros quebrados em uma caixa;

Os versos frágeis que um dia eu fiz ao último amor.

Novos versos são pedidos, não mais de amor ou de saudade, mas de esperança.

A esperança, nossa doce maldição.

E eu entendo a cidade como entendo meu coração,

Essas ruas e caminhos abandonados, por onde já não se deve mais caminhar,

Lá fora, aqui dentro...

O que virá depois se houver depois?

Abrir, talvez, essas comportas.

Dar vazão.

Deixar livre toda essa beleza contida.

Voltar para os Jardins do fundo da alma e cuidar,

Ressemear...

A claridade cinematográfica da tarde ronda os pensamentos junto de uma brisa de perfume delicado,

Uma canção ajuda a criar lembranças de coisas que nunca aconteceram:

É o coração que se recusa a parar de bater.

 

Eram tempos silenciosos, mas havia uma canção. Uma canção que falava sobre torres de ouro, sobre vozes angelicais ecoando pela abóboda de um firmamento muito azul.

E qual foi minha surpresa ao notar que do dia para noite uma nova chaminé se erguera, um pouco desengonçada, meio que se impondo, e dessa vez bem mais próxima à minha janela. E eu já incrédulo das chaminés e dos sentimentos desviei meu olhar o quanto pude daquela nova e até arrogante construção que parecia invadir um espaço que não lhe pertencia, que não lhe cabia, mas a fumaça que ela exalava tinha algo de perfumado e envolvia todos os cômodos da casa, da alma, esta já cansada dos aromas salgados e ferrosos da realidade.

 Mais uma vez, talvez por mais uma última vez, algo além da chaminé se impôs na paisagem, a paisagem interna a mim. Não demorou para eu ver até alguma beleza em algo que, ao mesmo tempo em que a chaminé, se achegou derrubando as armaduras do meu peito e adentrando sem muita cerimônia.

E naquilo que nascia abruptamente não havia muita nobreza ou encanto. Era algo rústico, simplório demais não no bom sentido. Mas omo eu disse, eram tempos extremamente esquisitos, e houve um momento, um momento em particular, em que meus pés ficaram centímetros acima do chão, e a partir de então eu não pude mais desviar o olhar, não pude mais manter a armadura sobre os ombros, e estas fizeram estrondosos barulhos ao atingir o chão. Eu não pude mais trancar as portas, ir de vez embora...

 

Eu falava da poesia que debandara dessas paragens

Durante verões agrestes e invernos inclementes

Gesticulando as mãos ao alto

Como se tentasse capturar ou desenhar medos e memórias.

Mas o que se prendia ao meu corpo de olhos tão atentos,

Se não a poesia?

E eu via nessas mesmas mãos com seus calos formados por tantos erros

e tentativas de fazer a terra dura florescer

Ser colocado lentamente um bom coração.

Um coração onde eu via tanto do meu

Em seus tempos de inocência.

É verdade que o mundo continua com suas ameaças de fim,

Porém ali, como que guardados em um abrigo, um refúgio,

O amor tentava ser bem-vindo.

E me dizia com lábios doces: fica!

Fica que lá fora rondam os fantasmas da noite escura.

E eu fui porque já não os temia, eu fui para poder voltar.

 

Mal durou o inverno, é bem verdade...

Não era muito, não era tanto...

Mas o que parecia ter deixado apenas um pequeno estrago a princípio foi se transformando em uma espécie de sumidouro que levava a luz dos dias.

Não era apenas alguém, não era apenas mais uma chaminé que parecia dessa vez tão firme desabando inexplicavelmente diante dos meus olhos da mesma forma estranha com que surgiu, era mais como uma ideia, um ideal, uma filosofia, uma fé, qualquer coisa de irônica, antagônica, que não poderia poder ferir tanto, mas podia, e feria.

Não era tão grande assim, aquela estranha chaminé, aquele amor desengonçado, mas era o que havia, e por haver, era tanto, era muito, era tudo.

Era na verdade, uma esperança, ainda que falsa, mas com as cores, com os aromas, com os sabores de uma esperança real.

E custou, meu Deus, custou horas doloridas por caminhos vazios de um tempo ainda muito mais esquisito, custou a única bela canção co suas torres de ouro e vozes angelicais, custou até, talvez, minha última aposta.

E eu de novo preso naquele vórtice, como o vento seco que fazia redemoinhos de poeira e fumaça pela decadente fábrica que parecia também, finalmente, desistir de novas chaminés.

Foi interessante despertar em uma manhã, após dias e dias que pareciam ser sempre o mesmo dia, e não lembrar mais da sua face.

Passada a dor, a quase revolta, eu voltei para o observar através da minha janela o que sobrara da quarta chaminé. Dessa vez eu saberia que não haveria mais outra, não havia espaço no terreno para uma nova construção. Seria preciso retirar as ruínas, remover os escombros, iniciar um outro projeto e ninguém parecia muito interessado nisso...

 

Era preciso viver mais para versos melhores,

E o mundo ainda em pausa,

Ou ao menos apenas eu em pausa,

Pelos que se foram ou quase se foram,

Por respeito, por medo.

E sim de novo o mesmo céu de agosto,

Um pouco mais frio,

Um pouco mais cinzento,

Um pouco mais triste,

Com a mesma estiagem brava de sempre,

Ou um pouco pior que sempre, dizem,

Levando quase todas as cores dos jardins cultivados pelas sorridentes senhoras de bairro.

Levando quase todo o encanto dos olhares pelas ruas.

E eu penso que alguns tentam frear o presente em nome de uma poesia pálida, fraca,

De uma nostalgia que não dá frutos e não tem perfume;

Os velhos livros que ninguém nunca mais lerá fazem isso,

O vento empoeirado faz isso,

Os poetas fazem isso,

As novas canções que já se tomaram velhas canções fazem isso,

Eu faço isso.

Porque parece ser mais precioso algo de belo vivido do que a expectativa de dias mais luminosos que não são anunciados.

Como poderia ser diferente?

E vamos ficando velhos sem crescer,

Ainda pequenas crianças melindrosas só querendo um dia de sol para brincar lá fora.

 

Então um dia eu abri meus olhos de uma forma diferente e tudo parecia tão bonito. Agosto finalmente se findara e eu sorria ao sol ainda esfumaçado do setembro que chegava. O sol de setembro não mais visto por entre os escombros das chaminés sem vida lá fora.

Minha janela foi então fechada, uma canção bonita falava sobre tardes de domingo, sobre haver ainda tanta beleza no mundo, lá no fundo.

E agora olhando para o lado oposto dessa janela eu vejo uma porta, e ao abrir essa porta eu aporto como que em um deserto... um longo vazio silencioso que a princípio quase me apavora e me faz recorrer às velhas orações da infância em que eu rogava abrigo, colo e consolação. Mas ao pisar nessas areias meus pés não se queimam e não há aqui espinhos que firam, e com pequenos passos, um após o outro, eu sigo, aos poucos observando que aqui em meio a aparentemente tanto nada, há belezas pulsantes, ainda que singelas e de pouco encanto, flores por entre as rachaduras, esperança ao imaginar a vinda de dias de chuva.

E eu sabia que mesmo com a longa estiagem, com o vazio inclemente que tantas vezes ameaçava cristalizar as partes mais delicadas do coração, onde eu havia chegado, onde eu estava era assim bonito, porque eu estava finalmente livre.

Os últimos ventos de agosto ainda soprando por um novo setembro, junto aos chuviscos rápidos e preciosos como doces amores adolescentes, devolveriam o azul do céu e algum verde às paisagens.

E esses ventos que brincam com as folhas, com cabelos e com as saias das jovens senhoras, acariciam não apenas a pele, mas quase que também o perispírito que aconchega a alma na matéria rude.

Brincam e se vão para longe após secar alguma lágrima de gratidão que escorre tímida após uma nova dose de esperança.

Agora, pelo firmamento deslizam nuvens como aquelas da infância que para mim eram o solo de um paraíso que se erguia reluzente acima delas;

O paraíso que nunca alcancei ou toquei,

mas que ainda sinto existir;

Tanto tempo depois, elas ainda estão lá, talvez as mesmas, como um sonho que nunca se desfaz por completo.

Já aqui, pelos rostos ainda ocultos e pelos olhos sem tanto brilho, percebemos que falta um certo tanto para a Primavera,

E só com muita gentileza e cuidado alguma flor resistente ousa florescer além dos ipês,

Dos ipês que seguem desabrochando como se o mundo não tivesse acabado e renascido centenas de milhares de vezes em alguns meses.

Eu sigo vagando pelas mesmas trilhas, quase sendo parte do caminho,

Eu sigo acalentando os mesmos sonhos por resistir no âmago deles uma pureza que nunca de desmancha por completo,

Eu sigo cantando, como se minha voz fosse bela,

Como se minha voz pudesse ser ouvida.

E então me lembro de quando a poesia regressou, tão ingênua e gentil, me perguntado o que haveria depois se houvesse um depois, e na ocasião eu não soube o que responder...

Talvez ainda não saiba...

Mas agora acredito que o que haverá depois poderá ser,

Finalmente,

Verdadeiramente,

O Amor.

 

 

 

 

 


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