Houve um tempo em que
havia uma janela, e dessa janela eu via um campo onde crescia uma vegetação
baixa que a cada estação se pintava de cores diferentes, cores aquelas que
naqueles jovens dias de outrora pareciam mais vivas, mais intensas. E diante daquela
janela eu me sentava, ora a preencher algumas linhas com versos singelos e
rasos sobre as banalidades das horas e do coração, ora apenas observando o
gotejar veloz com que a vida vai escorrendo por entre as frestas dos dedos da
gente...
E olhando desse agora
eu penso que talvez não fossem os dias a ter aquela aura de juventude, mas meu
espírito, ainda tão pacífico e leve, ainda de solo fértil, a sentir e observar
cada coisa através de um filtro, de uma lente de encanto. O mundo não teria perdido
em alguns pares de estações que se passaram, seus sabores e seus aromas, mas
estes, sorvidos naquelas primeiras vezes, eram como que mágicos.
Era então primavera...
Da minha janela eu vi
quando os primeiros tijolos foram descarregados. A princípio eu não fazia ideia
do que seria erguido ali naquele terreno em que meu olhar atravessava sem
impedimentos até a linha do horizonte.
Eu me lembro, tudo
parecia fervilhar em vida de uma forma exuberante. Todas as coisas exalavam
aromas juvenis, e o coração era leve, como se nunca tivessem se findado aqueles
dias em que corríamos nas estradas de terra com os pés descalços.
O vento fresco atiçava
a poeira das ruas e campos enquanto os homens descarregavam o alquebrado
caminhão que já parecia cansado de sua longa sina de carregar pedras.
Vindas de não muito
longe, velhas cantigas se misturavam ao som inquieto de centenas de pássaros
nas horas finais da tarde. Naqueles tempos se o mundo doía, doía bem longe
dali, porque tudo parecia estar no seu lugar, no lugar certo, com o mundo
girando sem solavancos, de forma simples, ingênua e livre, desabrochando
docilmente.
E em todas as tardes eu
me sentava próximo à janela e via um grupo de homens sisudos erguendo aos
poucos uma fábrica que parecia já nascer velha, e junto a ela, uma primeira
chaminé que meus olhos acompanhavam crescer tijolo por tijolo, tomando a forma
de um tronco marrom, esguio e alto, alto... Meu olhar se esticava junto dela
até o firmamento com seu escarlate sol poente por detrás.
E foi assim, enquanto os
homens trabalhavam, os pássaros faziam sua algazarra e as crianças brincavam
com pequenos pedaços de imaginação, que eu senti, no acanhado jardim da alma,
florescer o que tempos depois chamei de primeiro amor.
E aquilo que nasceu era
como se trouxesse luz, mesmo nos dias de céus de cobalto, mesmo nos dias das
flores esquecidas no asfalto, porque o jardim todo emanava uma claridade morna,
macia, que não feria, como um lar, um porto, um abrigo. E enquanto os dias se
passaram, enquanto eu observava aquela primeira chaminé lançar fumaças brancas
e fartas ao céu, o primeiro amor florescido cobria velhos espinheiros de flores
brancas e lilases. As fumaças claras, os dias felizes, os dedos entrelaçados
eram o bastante para fazer acreditar que algum tipo de eternidade era permitida
a seres tão pequenos e frágeis.
As ruas daquelas eras
eram pavimentadas de sutis belezas adocicadas, havia uma poesia menina
escorrendo pelos telhados quando chovia e certas canções eram como pequenos
milagres preenchendo e curando todas as rachaduras tão doloridas da alma.
Era agora o nosso olhar
a admirar a grande chaminé através da minha janela, e não apenas o meu. E
daquelas tardes, daquele recém redivivo coração, brotavam versos, tolos e
meigos.
Estar ao lado dele é
como abrigar o nascer do sol no olhar. E não há nada que ainda seja visível ao
redor além desse imenso círculo flamejante. Nada além dessas labaredas
multicoloridas; chamas divinas.
E quando ele se vai é
como o sol se pondo, e embora tão belo seja esse até logo, é tristonho ver a
luz se escondendo atrás dos campos escuros. É triste porque sei que a noite o
esconde de mim, e é belo, porque sei, o sol voltará a nascer numa manhã nem tão
distante, buscando-o de volta para o meu lado.
Ah eu o amo tanto! Amo,
porque ele sabe admirar o gotejar da chuva nas folhas, flores e espinhos da
primavera.
Sabe que orações são
muito mais gestos, sorrisos, olhares e toques do que meras palavras.
O amor é tanto, porque
ele considerou-me um pássaro azul, voando de norte a sul e trazendo a esperança
pra um mundo de criança...
Enquanto eu me via como
um pássaro negro, acorrentado em meu galho seco, desflorado.
O amor é tanto porque
me fez acreditar que talvez eu possua mesmo um par de asas bonitas, e isso me
faz querer voar, voar, voar... Quem sabe até alcançar um Paraíso Secreto.
O amor é tanto porque
ele sorri para estranhos, é gentil com crianças, gatos e pássaros. Olha para o
céu quando eu digo: “Olha que cores bonitas!”
O amor é tanto porque
quase acredito quando o ouço dizer que possuo uma alma grande. Pois olho para
minhas mãos, braços e peito e passo a sentir que algo maior se comprime dentro
dessa jaula de carne, sangue e ossos. Algo que em sua maior parte é bom,
pacífico e paciente, mas que um dia, um belo e iluminado dia, precisará ser
pleno e desvencilhado, precisará realmente nascer.
O amor é tanto porque
aquele colo é meu abrigo perfeito diante dos temporais frios; suas mãos sabem
tão acariciar meus cabelos enquanto as trovoadas vão diminuindo, diminuindo...
O amor é tanto porque ele
reconhece minhas lágrimas de alegria e me presenteia com pétalas de jasmins e
dança suavemente comigo no chuvisqueiro morno duma tarde de domingo...
Alguns poucos anos
foram se diluindo junto aos ventos e a brisa suave daqueles tempos foi aos
poucos se transformando em uma ventarola febril...
Descobri, pelo gotejar
das horas, pela visão sempre idêntica da chaminé através da minha janela, a
assustadora fragilidade das muralhas
daquele reino magnífico que lentamente, a realidade, a um toque inclemente, fez
ruir.
Os dedos foram se
desentrelaçando lentamente, as ligações ficaram mais curtas, do céu não caíam
mais pequenos diamantes reluzentes, mas apenas água; água fria. Um dia então
você se vestiu de preto, sorriu de forma triste, e dissemos um delicado
adeus... e mais uma vez observando a imponente chaminé, que já não lança mais
fumaças aos céus, dediquei-lhe últimos versos:
Ainda são aqueles
mesmos céus de cobalto
Choramingando um garoar
manso,
Insuficiente para que
as memórias se dissolvam,
Ou para que um pranto
não se achegue afinal.
É longa e silenciosa a
inquebrável distância.
Da velha fortaleza,
ruínas jazem,
Como miragens só
alcançadas pela lembrança.
Tanto tempo... e ainda,
algo de você.
Ah, se ao menos a chuva
caísse poderosa mais uma vez
E escondesse o secular
brilho das estrelas calmas
E a nossa canção fosse
tocada novamente,
Pacificando a saudade,
trazendo nossa antiga claridade.
Mas são apenas pequenos
e delicados devaneios,
Frágeis e inofensivas
esperanças,
Nunca mais revivíveis
outra vez, nunca mais...
Longínquos fragmentos
que a alma guarda do velho lar.
Eu podia sentir pelo
cheiro do ar. Anunciava-se então nova estação. Quando o verão chegou o sol
feroz feria as costas dos trabalhadores que descarregaram um ainda mais
alquebrado caminhão que trazia os tijolos do que seria uma segunda chaminé,
esta que era mais alta, mais bela e imponente que a primeira. Em uma velocidade
absurda eu vi a imensa torre erguer-se a riscar o céu e fumegar quase tanto
quanto a primeira que seu lado repousava como uma relíquia de tempos dourados.
Também ao mesmo tempo em que ela se erguia, crescia com muita beleza e força no
jardim recém refeito da alma, monumental arvoredo que desabrochava imensas e
impossíveis flores amarelas. E tanto atirava aos céus seus galhos, feito a
chaminé pouco além da minha janela, que eu quase me esqueci de tudo o que vi se
dissolver pelo firmamento feito a fumaça... O toque, os planos, desejos,
sonhos. Porque se antes aquilo que era eterno teve um fim, agora era tão certo
que não haveria nada que criasse rachaduras no chão do paraíso enfim alcançado.
Porque éramos um só, eu, o paraíso com todos seus anjos, ainda que o paraíso,
seus anjos e até eu mesmo estivéssemos a centenas de distâncias. Pois que
bastava um aceno, um toque, o gesto, e tudo se inundava de uma luz magnânima e
maciça que cortava em pequenos pedaços todas as leis do tempo e do espaço...
Hoje eu vi a esperança,
anjo meu.
Ela estava no galho
florido do ipê.
É fevereiro, nenhum
outro ipê está florindo.
Eles apenas florescem
em meados de julho e agosto, quando o inverno é presente e eles temem a morte.
Diante da ameaça
imposta pelo frio, pelo vento, pela aridez, eles dão o que poderia ser uma
última explosão de vida, escrevem um epitáfio com flores de cores intensas,
lançam suas sementes aos ventos numa tentativa de perpetuação.
Mas eles não morrem...
Os ventos frios,
inclementes e secos, partem.
A morna primavera chega
e os abraça como mãe carinhosa.
Eles ressurgem.
O verde volta aos
galhos enegrecidos.
Volta a sombra onde
brincam as crianças.
Como disse, é
fevereiro, anjo meu.
Mas há um galho florido
no ipê.
Um galho amarelo de
flor.
É como uma esperança
amadurecendo.
É uma resposta à última
grande tempestade, eu sei.
A última tempestade que
castigou o velho ipê.
Tirou suas folhas,
derrubou tantos de seus galhos.
Sei que temeu a morte
naqueles instantes, o ipê.
A vida tem dessas...
Ela nos ataca sem
chance de defesa, tantas vezes.
Que fez o ipê para que
a tempestade o ferisse?
Que fizemos nós para
que fôssemos feridos?
Não sei, anjo meu.
Mas sei que nossa
resposta, assim como a do ipê, será florescer.
Os galhos tirados pela
tempestade,
as lágrimas que nos
forem tiradas por outrem,
tudo isso será o
prelúdio de frutos e sementes.
É entristecedor que
antes da flor, antes do amor,
conheçamos o sofrer.
Dói profundamente, como
profundamente estão as raízes do ipê, sequer imaginar que alguém lhe cause dor.
Mas hoje eu vi a esperança,
meu amor...
E meus olhos quase não
contiveram o rio abençoado de emoções que se formou.
Hoje eu vi a
esperança...
e ela era amarela, era
bela, como as flores do ipê.
Imensa como a nova
chaminé era toda a distância, mas a ilusão tonava o mundo um mapa por onde
traçava com os dedos uma linha reta, acima dos rios, pontes e cidades, e você
então estava a algumas polegadas de mim. Eram aqueles, tempos sagrados. E tudo
o que havia de impuro na alma cobria-se de uma santidade imaculável. Nenhum
fantasma, nenhum pesadelo, nada, nada era mais forte que a intensidade do azul
daqueles olhos.
E quando aqui não
estava, eu observava sozinho o fumegar da chaminé que era minha nova
companheira. E como uma criança que em tudo vê um amigo, a ela eu contava sobre
as poucas, mas incríveis horas em que eu como que voava pelos céus, feito suas
fumaças, segurando as mãos do que eu via como um anjo.
Mas eu ainda me
lembro... foi na chegada de um pequeno lírio da paz ao jardim que eu observei
através da minha janela não apenas as conhecidas chaminés, mas o fantasma do
adeus...
Em meio às tempestades,
com ventos ferozes
uivando nas árvores e
cabos elétricos;
Em meio aos pesadelos
em que eu, já velho,
me escondia embaixo da
cama como qualquer criança;
Em meio às sementes que
teimam em não germinar,
ele veio: um pequeno
lírio da paz.
A coisa que pensei
quando o coloquei naquele canto foi:
Quando o amor passar
pela porta, será a primeira coisa que ele verá.
E talvez o coração do
amor se alegre em ver aquela pequena beleza humilde.
Mas agora o observo com
olhos marejados...
Talvez o amor não o
veja.
Talvez apenas eu possa
ver e dar importância àquelas flores.
E eu toco o lírio e
cuido do lírio como se cuidasse um pouco do amor.
Ignorando as paredes
sujas da minha alma,
Ignorando os estrondos
que os fantasmas emitem de dentro dessas paredes,
Ignorando que a vida e
o universo persistem além do sonho e do verso.
Mentimos tão bem quando
dizemos não querer nada do amor.
Fingimos tão bem que
não somos mais espíritos enlameados,
apenas rastejando rumo
à angelitude.
Do amor queremos o
amor.
Queremos que ele nos
absorva em seu âmago,
Nos envolva como a
terra envolve a semente.
Mas não mentimos quando
dizemos que o amor é forte.
Forte como o Jardim que
persiste vivo após a tempestade.
Forte como meu apreço
pelo pequeno e doce lírio, que ali,
imóvel e silencioso, me
obriga a entender como a esperança
e a vida
trabalham em seu tempo,
e não no do meu coração.
Nunca haveria desde
então adeus mais profundo e cortante, repleto de sequelas de onde brotaram
flores enfeiadas, sem perfume, sem encanto. Depois das palavras de não posso
mais, não pude mais também respirar, como poderia? Um dia após um dia, um ano
após um ano, e reverberava pelos cantos novamente rachados da alma a ausência.
O mundo era então um lugar completamente novo outra vez.
Após tudo, para tão
pouca coisa acontecida, uma avalanche, um desabamento estrondoso de memórias,
algumas de fato vividas, a maior parte sonhadas. Mas cada caco, cada estilhaço,
cada escombro parecia valioso, e feria minhas mão tentando acaricia-los,
acolhe-los, lapidá-los, e eu chorava sobre eles, na esperança de renascerem, de
germinarem uma outra vez.
Então aconteceu o
tempo, sutil, silencioso, longo como uma noite febril. E aquilo tudo foi se
liquidificando, escorrendo, desfazendo; evanescendo no ar como a fumaça da
chaminé sendo dissolvida pelas mornas brisas finais do verão. E um dia, quando
aprendi alguma forma de não amar mais aquela dor, você passou. Como a escuridão
da noite após o levante do sol, você passou. Como a febre que se cura...
Você passou.
Quando dei por mim, uma
terceira chaminé se levantava ao lado das outras duas, agora pelo visto
desativadas. Ela tinha algo de frágil e confuso em sua estrutura, mas como não
entendo de chaminés supus que tudo estava dentro dos conformes, e que a
velocidade com que era erguida fazia sentido por alguma urgência da fábrica.
O mundo já havia girado tantas vezes que eu
ainda tinha o estômago em ânsias diante da realidade. Não havia espaço para
muitos questionamentos.
Era outono.
Eu havia deixado a
segurança da minha janela em uma busca tola e perigosa por outras paisagens,
por outras chaminés, quem sabe, além daquelas que via através da minha
janela.
Não parecia haver muito
a se perder. E eu quase não via pequenas partes minha ficando às margens de
cada caminho pavimentado de uma mistura caótica de loucura e lucidez pelo qual
passei.
E foram muitas milhas,
muitas estradas.
Então, um dia, eu
estava perdido.
Perdido e com uma carga
de inutilidades pontiagudas nas costas, gemas falsas, ouro de tolos, pesando em
meus ombros, cansando meus pés que não conseguiam encontrar o caminho de volta
pra casa.
Até que... até que eu
vi um sinal de fumaça, sutil, delicado, distante, distante...
De onde eu estava eu
via o topo da terceira chaminé, já em funcionamento, como que me chamando de
volta ao lar. E eu ergui meu olhar e dei um passo, e mais um passo, e acreditei
poder retornar à minha janela, ao meu jardim, a mim.
E eu cheguei, e eu me
lembro que chegar foi com um abraço, um abraço forte, quente, aguardado.
Alguma coisa foi dita
naqueles dias...
Estava tudo em um santo repouso no fundo de
uma alma envolta em penumbras.
Mesmo o que havia
morrido, em partes, ainda vivia.
Eu sentia enquanto
desconhecidas canções tentavam resgatar algum resquício do meu amor pela
esperança.
Era uma tarde de
domingo qualquer. Sem memórias. Sem expectativas. Apenas com o sol deitando
suas luzes pelas frestas dos muros e dourando as flores simples do jardim.
Ainda assim era tanto,
tão raro, tão precioso.
Vivo.
E os olhos quase
jorravam, como naqueles dias espetaculares que eu tirava para perdoar a mim
mesmo, para enxergar a minha própria divindade.
Eu me escondi das
palavras porque tudo o que procurou fazer morada em meu coração foi a aridez
bruta desses tempos insanos. Como poderia ser diferente?
Mas há, quem sabe, um
descanso, um momento onde o olhar pode se dirigir para o céu em que outono
renova as folhas.
Sejamos nós, talvez,
pequenos oásis nesse imenso deserto de corações letárgicos, quase mortos.
Sejamos nós a brisa, o
perfume sutil.
Isso não é pouco, não.
Sejamos nós os que, de
alguma forma, ainda acreditam.
Dei a mim mesmo o
direito de mais um mergulho, mais nascimento, mais uma absolvição. Talvez não
fosse preciso, afinal, desistir.
E eu era quase bom
nisso de transformar minúsculas fagulhas em um imenso fogaréu. Era quase bom em
não desistir, em não sair correndo ao primeiro sinal de incêndio. As canções
daquele outono falavam de juventude e beleza, e algumas migalhas de afeto
enchiam meu peito de um combustível raro e delicioso.
Mas foi um outono
extremamente frio aquele, e só eu procurava ali uma renovação que não viria. Na
verdade, era eu que não via... que eu não tinha mais importância do que uma
figura qualquer na paisagem. Um figurante despercebido em uma peça ruim e mal
inacabada.
A realidade soprava
forte, e eu ignorava.
Era noite quando notei
as rachaduras. Noite de um vento tão gélido que parecia afiado. Pequenos
estalos sucessivos foram ouvidos, seguidos por sons maiores, duros estrondos. A
terceira chaminé logo além da minha janela ruía sobre si mesma. E eu apenas
podia observar, triste e incrédulo. Mais tarde eu soube que, como aquele quase
amor, fora construída sobre alicerce mal feito. Ela não resistira sobre si
mesma.
Eu buscava velhas
imagens para adornar novos poemas que no fundo eram em tudo também semelhantes
aos velhos poemas.
Antigas palavras
moldadas em novas linhas para esconder as mesmas antigas lições que não foram
aprendidas e por isso se repetem.
De novo eu falaria da
memória de um perfume que entrava pelas tantas brechas da sanidade para
reacender chamas que nunca deveriam ter queimado, de novo eu falaria da
ausência dos adeuses, dos pontos finais, da neblina que encobre e confunde
todas as certezas.
De novo eu falaria do
amor.
Ou do que penso ser o
amor.
Ou do que gostaria que
fosse amor,
mas nunca será.
Em 90 dias meu sistema
estará limpo, como diz a canção de tons angustiantes e rasgados.
90 dias é quanto tempo?
Muito pouco? Uma
eternidade? O suficiente?
Não é tão grave, não
deveria ser.
É só o cansaço
colocando uma lente diante dos olhos e ampliando demais todas as coisas, dando-lhes
uma importância que não devem possuir.
Ou é mais grave do que
parece: o coração não podia mais com nenhum golpe depois dos bizarros últimos
tempos.
Ainda me sinto vivo
porque as palavras não cessaram. Como plaquetas, auxiliam no processo de
coagulação para que os cortes fechem e cicatrizem.
No fundo ainda há um
resquício de paixão pela dor por ser ela tudo o que restou de um futuro
inexistente.
Mas resquícios acabam.
E paixões terminam de queimar.
Três ruínas, três chaminés
agora desativadas vistas em escombros além da minha janela. Eram tempos
extremamente esquisitos quando chegou o inverno...
O mundo como que parara
de girar e muitos além de mim observavam vastidões vazias além de suas janelas.
Portas e portões trancados. Alguns diziam ser o fim dos tempos, outros falavam
em punição, outros, enfim, sobre a necessidade de abrir portas e janelas, nas
casas, nas almas.
A cidade naufragada em
silêncio, em tanto silêncio, me faz sentir saudade do som daqueles versos que
eram como vidros quebrados em uma caixa;
Os versos frágeis que
um dia eu fiz ao último amor.
Novos versos são
pedidos, não mais de amor ou de saudade, mas de esperança.
A esperança, nossa doce
maldição.
E eu entendo a cidade
como entendo meu coração,
Essas ruas e caminhos
abandonados, por onde já não se deve mais caminhar,
Lá fora, aqui dentro...
O que virá depois se
houver depois?
Abrir, talvez, essas
comportas.
Dar vazão.
Deixar livre toda essa
beleza contida.
Voltar para os Jardins
do fundo da alma e cuidar,
Ressemear...
A claridade
cinematográfica da tarde ronda os pensamentos junto de uma brisa de perfume
delicado,
Uma canção ajuda a
criar lembranças de coisas que nunca aconteceram:
É o coração que se
recusa a parar de bater.
Eram tempos
silenciosos, mas havia uma canção. Uma canção que falava sobre torres de ouro,
sobre vozes angelicais ecoando pela abóboda de um firmamento muito azul.
E qual foi minha
surpresa ao notar que do dia para noite uma nova chaminé se erguera, um pouco
desengonçada, meio que se impondo, e dessa vez bem mais próxima à minha janela.
E eu já incrédulo das chaminés e dos sentimentos desviei meu olhar o quanto
pude daquela nova e até arrogante construção que parecia invadir um espaço que
não lhe pertencia, que não lhe cabia, mas a fumaça que ela exalava tinha algo
de perfumado e envolvia todos os cômodos da casa, da alma, esta já cansada dos
aromas salgados e ferrosos da realidade.
Mais uma vez, talvez por mais uma última vez,
algo além da chaminé se impôs na paisagem, a paisagem interna a mim. Não
demorou para eu ver até alguma beleza em algo que, ao mesmo tempo em que a
chaminé, se achegou derrubando as armaduras do meu peito e adentrando sem muita
cerimônia.
E naquilo que nascia
abruptamente não havia muita nobreza ou encanto. Era algo rústico, simplório
demais não no bom sentido. Mas omo eu disse, eram tempos extremamente
esquisitos, e houve um momento, um momento em particular, em que meus pés
ficaram centímetros acima do chão, e a partir de então eu não pude mais desviar
o olhar, não pude mais manter a armadura sobre os ombros, e estas fizeram
estrondosos barulhos ao atingir o chão. Eu não pude mais trancar as portas, ir
de vez embora...
Eu falava da poesia que
debandara dessas paragens
Durante verões agrestes
e invernos inclementes
Gesticulando as mãos ao
alto
Como se tentasse
capturar ou desenhar medos e memórias.
Mas o que se prendia ao
meu corpo de olhos tão atentos,
Se não a poesia?
E eu via nessas mesmas
mãos com seus calos formados por tantos erros
e tentativas de fazer a
terra dura florescer
Ser colocado lentamente
um bom coração.
Um coração onde eu via
tanto do meu
Em seus tempos de
inocência.
É verdade que o mundo
continua com suas ameaças de fim,
Porém ali, como que
guardados em um abrigo, um refúgio,
O amor tentava ser
bem-vindo.
E me dizia com lábios
doces: fica!
Fica que lá fora rondam
os fantasmas da noite escura.
E eu fui porque já não
os temia, eu fui para poder voltar.
Mal durou o inverno, é
bem verdade...
Não era muito, não era
tanto...
Mas o que parecia ter
deixado apenas um pequeno estrago a princípio foi se transformando em uma
espécie de sumidouro que levava a luz dos dias.
Não era apenas alguém,
não era apenas mais uma chaminé que parecia dessa vez tão firme desabando
inexplicavelmente diante dos meus olhos da mesma forma estranha com que surgiu,
era mais como uma ideia, um ideal, uma filosofia, uma fé, qualquer coisa de
irônica, antagônica, que não poderia poder ferir tanto, mas podia, e feria.
Não era tão grande
assim, aquela estranha chaminé, aquele amor desengonçado, mas era o que havia,
e por haver, era tanto, era muito, era tudo.
Era na verdade, uma
esperança, ainda que falsa, mas com as cores, com os aromas, com os sabores de
uma esperança real.
E custou, meu Deus,
custou horas doloridas por caminhos vazios de um tempo ainda muito mais esquisito,
custou a única bela canção co suas torres de ouro e vozes angelicais, custou até,
talvez, minha última aposta.
E eu de novo preso
naquele vórtice, como o vento seco que fazia redemoinhos de poeira e fumaça pela
decadente fábrica que parecia também, finalmente, desistir de novas chaminés.
Foi interessante
despertar em uma manhã, após dias e dias que pareciam ser sempre o mesmo dia, e
não lembrar mais da sua face.
Passada a dor, a quase
revolta, eu voltei para o observar através da minha janela o que sobrara da
quarta chaminé. Dessa vez eu saberia que não haveria mais outra, não havia
espaço no terreno para uma nova construção. Seria preciso retirar as ruínas,
remover os escombros, iniciar um outro projeto e ninguém parecia muito
interessado nisso...
Era preciso viver mais
para versos melhores,
E o mundo ainda em
pausa,
Ou ao menos apenas eu
em pausa,
Pelos que se foram ou
quase se foram,
Por respeito, por medo.
E sim de novo o mesmo
céu de agosto,
Um pouco mais frio,
Um pouco mais cinzento,
Um pouco mais triste,
Com a mesma estiagem
brava de sempre,
Ou um pouco pior que
sempre, dizem,
Levando quase todas as
cores dos jardins cultivados pelas sorridentes senhoras de bairro.
Levando quase todo o
encanto dos olhares pelas ruas.
E eu penso que alguns
tentam frear o presente em nome de uma poesia pálida, fraca,
De uma nostalgia que
não dá frutos e não tem perfume;
Os velhos livros que
ninguém nunca mais lerá fazem isso,
O vento empoeirado faz
isso,
Os poetas fazem isso,
As novas canções que já
se tomaram velhas canções fazem isso,
Eu faço isso.
Porque parece ser mais
precioso algo de belo vivido do que a expectativa de dias mais luminosos que
não são anunciados.
Como poderia ser
diferente?
E vamos ficando velhos
sem crescer,
Ainda pequenas crianças
melindrosas só querendo um dia de sol para brincar lá fora.
Então um dia eu abri
meus olhos de uma forma diferente e tudo parecia tão bonito. Agosto finalmente
se findara e eu sorria ao sol ainda esfumaçado do setembro que chegava. O sol
de setembro não mais visto por entre os escombros das chaminés sem vida lá fora.
Minha janela foi então
fechada, uma canção bonita falava sobre tardes de domingo, sobre haver ainda
tanta beleza no mundo, lá no fundo.
E agora olhando para o
lado oposto dessa janela eu vejo uma porta, e ao abrir essa porta eu aporto
como que em um deserto... um longo vazio silencioso que a princípio quase me
apavora e me faz recorrer às velhas orações da infância em que eu rogava
abrigo, colo e consolação. Mas ao pisar nessas areias meus pés não se queimam e
não há aqui espinhos que firam, e com pequenos passos, um após o outro, eu
sigo, aos poucos observando que aqui em meio a aparentemente tanto nada, há belezas
pulsantes, ainda que singelas e de pouco encanto, flores por entre as
rachaduras, esperança ao imaginar a vinda de dias de chuva.
E eu sabia que mesmo
com a longa estiagem, com o vazio inclemente que tantas vezes ameaçava
cristalizar as partes mais delicadas do coração, onde eu havia chegado, onde eu
estava era assim bonito, porque eu estava finalmente livre.
Os últimos ventos de
agosto ainda soprando por um novo setembro, junto aos chuviscos rápidos e
preciosos como doces amores adolescentes, devolveriam o azul do céu e algum
verde às paisagens.
E esses ventos que
brincam com as folhas, com cabelos e com as saias das jovens senhoras,
acariciam não apenas a pele, mas quase que também o perispírito que aconchega a
alma na matéria rude.
Brincam e se vão para
longe após secar alguma lágrima de gratidão que escorre tímida após uma nova
dose de esperança.
Agora, pelo firmamento
deslizam nuvens como aquelas da infância que para mim eram o solo de um paraíso
que se erguia reluzente acima delas;
O paraíso que nunca
alcancei ou toquei,
mas que ainda sinto
existir;
Tanto tempo depois,
elas ainda estão lá, talvez as mesmas, como um sonho que nunca se desfaz por
completo.
Já aqui, pelos rostos
ainda ocultos e pelos olhos sem tanto brilho, percebemos que falta um certo
tanto para a Primavera,
E só com muita gentileza
e cuidado alguma flor resistente ousa florescer além dos ipês,
Dos ipês que seguem
desabrochando como se o mundo não tivesse acabado e renascido centenas de
milhares de vezes em alguns meses.
Eu sigo vagando pelas
mesmas trilhas, quase sendo parte do caminho,
Eu sigo acalentando os
mesmos sonhos por resistir no âmago deles uma pureza que nunca de desmancha por
completo,
Eu sigo cantando, como
se minha voz fosse bela,
Como se minha voz
pudesse ser ouvida.
E então me lembro de
quando a poesia regressou, tão ingênua e gentil, me perguntado o que haveria
depois se houvesse um depois, e na ocasião eu não soube o que responder...
Talvez ainda não
saiba...
Mas agora acredito que
o que haverá depois poderá ser,
Finalmente,
Verdadeiramente,
O Amor.
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