21 de abr. de 2019

Ser


Na maior parte do tempo, mesmo com todo o ranger enlouquecedor das engrenagens da vida, o que estava à tona era uma silenciosa espécie de não-ser. Uma incógnita, uma ansiedade, uma espera conscientemente inútil pontilhada por cacos nocivos de uma saudade morta-viva, indecomposta.
O mundo se tornara vulgarmente árido e óbvio. E contrário disso, a vida em exuberância, claridade e mistério, abria uma janela memorial para um passado que jamais deve ser tocado ou sentido, ainda que pulse.
Eu queria que restasse nos cantos da alma aquelas pequenas preciosidades bobas que eu oferecia tão carinhosamente... Quando, mesmo com toda a densidade e escuridão já tão profundamente conhecidas, vividas, sentidas, havia um riacho de docilidade que jorrava pelo sertão amargo dos dias.
Talvez se eu conseguisse me ver com os olhos que você fingia me ver antes de para sempre partir, eu entenderia algo mais perene sobre o verdadeiro amor.
Eu não gostaria de viver satisfeito apenas por ter tempo suficiente para tomar fôlego para o próximo susto. Acredito que você também não.
Eu estou com o papel em branco em mão, e mesmo com as forças que seguram e endurecem meus dedos, talvez eu ainda possa reescrever um final ou dois, um caminho que traga novamente aquele fogo ao olhar. Quais palavras ainda não foram por mim ditas, que suplicas não foram lançadas ao universo, o que ainda não foi exposto do coração, mesmo para seres estranhos, incapazes, frios? Parece mais difícil agora descobrir.
Eu sempre irei voltar para esse vórtice de gratidão, confusão, medo e ódio por ter sido um dia abençoado com a maldição do seu amor...
Mas mesmo nessa penumbra dos dias, mesmo nessa ausência aparente de claridades e belezas e sonhos recém-nascidos, o que existira do verdadeiro Eu ainda existe na mesma proporção, ainda que encarnado em uma forma completamente diferente.

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