31 de mai. de 2020

31/05/2020



Eu queria acreditar que existia algo concreto, sólido e bom por trás de uma fantasia, uma casca, frágil e suja. Eu queria acreditar porque precisa haver algo a mais. Algo que dure, algo que resista.
E que as palavras são pequenas faíscas clareando a escuridão onde esse algo se esconde, como crianças abobadas brincando com a chama de uma vela.
Mas há essa voz doce e sóbria dizendo que talvez seja tarde demais. E ela não é cruel, pois não mente.
Eu continuo insistindo em distinguir alguma coisa com essa parca claridade, mas não faz sentido essa paixão pela ilusão de que existe algo vindo em minha direção. Tudo permanece o mesmo. E o que vejo se movimentar são escombros se diluindo lentamente no tempo. Quando nem eles restarem, eu ainda restarei?
Por enquanto eu posso lembrar de quando a chuva acalmava as batalhas. Lavava o sangue dos campos, dissolvia o medo. Lembro da luz que nascia silenciosa em seguida, e do espírito sonhando livre, acima da carne maculada.
Mas hoje não chove.
Nessas noites tristes e frias as dúvidas voltam... e se aquelas mãos não tivessem me contaminado? E se o amor não tivesse me curado? Contudo, não há mais juventude para a absolvição dos pecados, para a misericórdia. Essa suave angústia é apenas mais um dos dez passos dados para trás após um único passo dado à frente. E estamos cansados.
As chamas se apagam e eu deixo de acompanhar o destino dos escombros. Ninguém nos levará para casa.
É melhor não despir totalmente o que resta da fantasia.