31 de out. de 2025

Resta




Resta ainda algo de um morno luzir no coração que já pouco pulsa 

Resta um leve sabor de vida 

Resta esse reflexo opaco na armadura desse soldado exausto de uma guerra infinda 

E isso que é tão pouco 

Provavelmente menos que nada 

Tem um valor incalculável por algum instante

A voz 

O perfume 

O brilho dos olhos 

Pequenos tesouros que pairam brevemente pela atmosfera 

Antes de deitarem ao chão 

E dissolverem-se como flocos de neve

Mas então a canção 

O sorriso 

E a palavra 

Outra delicada memória para adormecer  

No modesto relicário da alma.

29 de out. de 2025

Aqui, agora

 

O perfume das novas flores 

Traz da memória adormecida 

A doce sensação daqueles velhos tempos 

Em que algo de belo, puro e sagrado 

Era emanado de todas as coisas 


Aquele tempo em que a chuva caía como uma oração 

Forte, poderosa, curativa 

Fertilizado a terra tão carente do milagre da vida


O coração está longe de ser o mesmo que de outrora 

Pesados pecados e ásperas ilusões 

Envolvem-no feito uma couraça 

Extirpando seu brilho 


Mas aqui, agora 

Ao som de uma voz sagrada 

Acolhido pelo manto solitário e suave da noite 

Eu começo a entender 

Que é só após mergulhar na escuridão mais profunda 

Que se torna possível começar a enxergar 

Aquilo que verdadeiramente reluz.

12 de out. de 2025

Mãezinha

 

Cai a chuva 

Mãezinha 

No dia dedicado a ti 

Do céu

Dos olhos 

A água santa escorre sobre as feridas 

Sulcos profundos no solo das almas ressequidas 

Ansiosas por uma floração que parece nunca chegar 

Como ovelhas desgarradas 

Rogamos teu amor e misericórdia 

Mesmo sendo nós 

Os que colocamos o teu filho amado no madeiro cruel 

Ainda sim 

Nos oferece Teu manto sagrado 

Para enxugar lágrimas que não cessam de cair 

Bendita é tu, cheia de graça 

A quem os anjos se curvaram a pedir permissão 

Antes do teu ventre abrigar a maior das luzes 

Tende compaixão destes teus outros rebentos 

Ainda tão pequenos e tão mesquinhos 

Mas que um dia serão dignos 

De ao menos olhar para ti. 

Armadilha



Era um dia dolorido para se plantar flores 

Mas plantamos

E o sol em toda sua imponência logo fez murchar algo de tão bom em bonito 

Talvez não sobreviva mais

O que há de bom e bonito 

Mas seguimos plantando 

Regando 

Acendendo 

Quem sabe em algum momento o inverno vá embora 

E a primavera chegue de verdade 

Talvez essas coisas que se perdem 

Nunca tenham sido encontradas de fato 

E é um consolo muito triste pensar assim 

E eu me lembro de um aviso 

Dizendo para nunca voltar para onde já se foi feliz 

Pode ser perigoso 

Pois não há mais nada real lá 

Apenas formas estranhas 

Como naqueles pesadelos 

Em que tentamos tanto fugir 

Sem nunca sair do lugar 

Às vezes a vida é parecida como uma armadilha 

Onde cada palavra pode e será usada contra você no juízo final 

Ou no juízo intermediário 

Que acontece o tempo todo 

Mas às vezes a vida é bonita 

Emociona

Um beija-flor para no ar para sugar o néctar da flor que eu plantei 

E essa visão faz o coração doer um pouco menos 

Então eu percebo que já não dói saber que nunca virá 

Não da mesma forma que já doeu 

Pois que o silêncio 

Antes tão assustador 

Agora é o milagre mais rogado aos anjos recém-nomeados